Assine VEJA por R$2,00/semana
Continua após publicidade

Livros numa hora destas?

A função da literatura é um enigma — mas que ela existe, existe

Por José Francisco Botelho
Atualizado em 31 jan 2018, 16h37 - Publicado em 25 jan 2018, 06h00

“O que é o tempo?”, especulou Santo Agostinho em uma passagem maravilhosa das Confissões. “Se ninguém me faz a pergunta, eu sei a resposta; mas no momento em que tento explicar, deixo de sabê-la.” Encontro-me em situação semelhante quando alguém me pergunta qual a função da literatura ( e muita gente tem me perguntado isso nos últimos meses). Há certas coisas que são obviamente essenciais ao correto funcionamento da vida, do mundo ou, vá lá, do espírito – e, ainda assim, não sabemos dizer com exatidão para que servem, ou de que maneira realizam o que têm de realizar. Não é de hoje que se exige da literatura o cumprimento de deveres muitas vezes contraditórios: salvar a moral e os bons costumes, ou destruí-los; resgatar o Ocidente do abismo, ou empurrá-lo borda adentro… Nesses dias conturbados, me flagrei lembrando certa entrevista de Italo Calvino na década de 80. “Escrevo para divertir os leitores”, disse o autor, singelamente, explicando os motivos que o levaram a criar o divertidíssimo O Visconde Partido ao Meio. E antes que alguém pudesse acusá-lo de leviandade, ajuntou: “Creio que divertir seja uma função social. O divertimento é uma coisa séria”.

Também acho que divertimento é coisa séria: eu me divirto lendo Shakespeare e recomendo que todos o façam. Mas alguém poderia argumentar que, se cada vez menos pessoas leem por gosto, a serventia da literatura decresce proporcionalmente. A isso, tenho duas respostas. A primeira é que o gosto pela leitura talvez não esteja tão moribundo quanto geralmente se alardeia. Há cerca de um ano, me perguntei nesta mesma coluna se a literatura poderia morrer; os fatos me respondem que talvez até morra, mas não agora: 2017, vejam só, foi um ano inesperadamente bom para o mercado de livros no Brasil. Não apenas as vendas aumentaram (em cerca de 6%), como viu-se um interesse renovado pelos clássicos, graças ao surgimento de novas e criativas traduções – do grego, do alemão, das línguas escandinavas, até do antigo acádio… Tudo isso, no meio da confusão em que andamos metidos: não é pouca coisa, não.

Em segundo lugar: o divertimento proporcionado pela literatura é algo de específico e insubstituível. Discordemos o quanto queiramos sobre qual tipo de literatura é mais adequado aos nossos tempos, mas concordemos numa coisa: um universo onde já ninguém seja capaz de divertir-se lendo seria um arrabalde do inferno. Esta parece uma boa hora para deixar de lado, por um tempo, as distinções muitas vezes arbitrárias entre arte e entretenimento, e fazer um elogio da fruição estética como aquilo que sempre foi: uma maneira de explorar os limites da imaginação humana e, por conseguinte, preservar a sanidade em um mundo tormentoso. É exatamente numa hora destas, portanto, que a literatura se torna imprescindível e talvez redentora: não uma fuga do mundo, mas um caminho de volta a ele – regresso a uma parte essencial do universo humano que a cegueira, a raiva e o fanatismo ameaçam ofuscar.

Publicado em VEJA de 31 de janeiro de 2018, edição nº 2567

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 39,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.