Livros numa hora destas?
A função da literatura é um enigma — mas que ela existe, existe
“O que é o tempo?”, especulou Santo Agostinho em uma passagem maravilhosa das Confissões. “Se ninguém me faz a pergunta, eu sei a resposta; mas no momento em que tento explicar, deixo de sabê-la.” Encontro-me em situação semelhante quando alguém me pergunta qual a função da literatura ( e muita gente tem me perguntado isso nos últimos meses). Há certas coisas que são obviamente essenciais ao correto funcionamento da vida, do mundo ou, vá lá, do espírito – e, ainda assim, não sabemos dizer com exatidão para que servem, ou de que maneira realizam o que têm de realizar. Não é de hoje que se exige da literatura o cumprimento de deveres muitas vezes contraditórios: salvar a moral e os bons costumes, ou destruí-los; resgatar o Ocidente do abismo, ou empurrá-lo borda adentro… Nesses dias conturbados, me flagrei lembrando certa entrevista de Italo Calvino na década de 80. “Escrevo para divertir os leitores”, disse o autor, singelamente, explicando os motivos que o levaram a criar o divertidíssimo O Visconde Partido ao Meio. E antes que alguém pudesse acusá-lo de leviandade, ajuntou: “Creio que divertir seja uma função social. O divertimento é uma coisa séria”.
Também acho que divertimento é coisa séria: eu me divirto lendo Shakespeare e recomendo que todos o façam. Mas alguém poderia argumentar que, se cada vez menos pessoas leem por gosto, a serventia da literatura decresce proporcionalmente. A isso, tenho duas respostas. A primeira é que o gosto pela leitura talvez não esteja tão moribundo quanto geralmente se alardeia. Há cerca de um ano, me perguntei nesta mesma coluna se a literatura poderia morrer; os fatos me respondem que talvez até morra, mas não agora: 2017, vejam só, foi um ano inesperadamente bom para o mercado de livros no Brasil. Não apenas as vendas aumentaram (em cerca de 6%), como viu-se um interesse renovado pelos clássicos, graças ao surgimento de novas e criativas traduções – do grego, do alemão, das línguas escandinavas, até do antigo acádio… Tudo isso, no meio da confusão em que andamos metidos: não é pouca coisa, não.
Em segundo lugar: o divertimento proporcionado pela literatura é algo de específico e insubstituível. Discordemos o quanto queiramos sobre qual tipo de literatura é mais adequado aos nossos tempos, mas concordemos numa coisa: um universo onde já ninguém seja capaz de divertir-se lendo seria um arrabalde do inferno. Esta parece uma boa hora para deixar de lado, por um tempo, as distinções muitas vezes arbitrárias entre arte e entretenimento, e fazer um elogio da fruição estética como aquilo que sempre foi: uma maneira de explorar os limites da imaginação humana e, por conseguinte, preservar a sanidade em um mundo tormentoso. É exatamente numa hora destas, portanto, que a literatura se torna imprescindível e talvez redentora: não uma fuga do mundo, mas um caminho de volta a ele – regresso a uma parte essencial do universo humano que a cegueira, a raiva e o fanatismo ameaçam ofuscar.
Publicado em VEJA de 31 de janeiro de 2018, edição nº 2567