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Estrela que não se apaga

Revolucionário da física, exemplo de resiliência, ícone pop, Stephen Hawking moldou a forma como vemos o universo — e comoveu o mundo em sua morte

Por Filipe Vilicic Atualizado em 16 mar 2018, 06h00 - Publicado em 16 mar 2018, 06h00
(./VEJA)

Não fosse o bom humor atávico e genuíno de um homem que desde os 21 anos sofria de esclerose lateral amiotrófica, doença que paulatinamente lhe ceifou os movimentos, Stephen Haw­king não chegaria a lugar algum — e tampouco nos levaria aonde nos levou, ao início de tudo, ao infinito. Na introdução de Uma Breve História do Tempo, de 1988, ele escreveu: “Alguém me disse que cada equação que eu incluísse no livro reduziria as vendas pela metade. Assim, resolvi não utilizar nenhuma. No entanto, no final, incluí mesmo uma, a famosa equação de Einstein: E = mc²”. O best-­seller chegou a 10 milhões de unidades vendidas, e contando. Fez do físico teórico um ídolo pop, cujas ideias começaram a circular como se fossem de fácil compreensão. Somava-se à beleza de seu raciocínio a precariedade imposta pelo estado de saúde, que limitara seu controle corporal à flexão de um dedo e aos movimentos voluntários dos olhos. Antes do fim, ele perdeu até esses últimos resquícios de controle, limitando-se a flexões de bochechas. Suas faculdades mentais, porém, continuaram intactas — bem como seu vivíssimo interesse por strip-teases femininos. Virou personagem de um episódio de Os Simpsons. Foi levado ao cinema em A Teoria de Tudo, de 2014, que resultou no Oscar de melhor ator ao britânico Eddie Red­mayne. A inconfundível voz metálica, emitida a partir de um sintetizador especialmente desenvolvido para ele, ecoou numa balada da banda Pink Floyd, Keep Talking.

Mas, afinal de contas, como foi que um cientista de ideias tão herméticas e incômodas, por cutucar o que desconhecemos, ganhou a dimensão de Hawking, cuja morte, na quarta­-feira, aos 76 anos, comoveu o mundo? A melhor resposta veio do astrônomo Carl Sagan (1934-1996) no prefácio da primeira edição de Uma Breve História do Tempo, com a clareza característica dos grandes evangelizadores do conhecimento: “Excetuando as crianças (que não sabem o suficiente para não fazer as perguntas importantes), poucas pessoas dedicam tempo a indagar por que a natureza é assim; de onde veio o cosmo ou se sempre aqui esteve; se um dia o tempo fluirá ao contrário e se os efeitos vão preceder as causas; ou se haverá limites definidos para o conhecimento humano. Há crianças, e conheci algumas, que querem saber qual é o aspecto dos buracos negros; qual é o menor pedaço de matéria; por que é que nos lembramos do passado e não do futuro; como é que, se inicialmente havia o caos, hoje existe aparentemente a ordem; e por que há um universo”. Em outras palavras: Hawking voou porque pensou como uma criança, para quem as perguntas são sempre muito mais fascinantes do que as respostas.

Essa pureza intelectual, permanente como os traços soltos de Van Gogh, que pareciam pueris e eram adultos, instalou Hawking numa linha evolutiva que nasceu com Galileu Galilei, passou por Isaac Newton e chegou a Albert Einstein, agora com um curioso par de coincidências: Hawking nasceu em 8 de janeiro de 1942, precisamente 300 anos depois da morte de Galileu, e morreu em 14 de março, o mesmo dia em que nasceu Albert Einstein, em 1879. O que isso quer dizer? Nada, até onde sabemos. Haw­king, ele próprio, brincava com a data de seu aniversário, e possivelmente transformaria em piada, com seu humor ácido, a coincidência de sua morte. “Cerca de 200 000 outros bebês também nasceram naquele dia e não sei se algum deles posteriormente se interessou por astronomia”, escreveu em sua autobiografia, Minha Breve História, publicada no Brasil pela Intrínseca, que também lança suas outras obras no país. De qualquer maneira, esse jogo de datas, mera casualidade, agrupa informações interessantes demais para ser subtraídas, ainda que seja impossível, é claro, explicá-­las de modo científico, cartesiano. Atado à cadeira de rodas, com a mente a viajar — embora numa oportunidade tenha feito um voo em gravidade zero, a bordo de uma aeronave americana de testes para uma estação espacial, cuja foto, evidentemente, viralizou —, o gênio de Cambridge funcionava nesse diapasão antropofágico. Tudo o atraía, inclusive o que só a metafísica e a teologia explicam, mesmo que fossem tolices como esse casamento de efemérides agora eternizado.

Para Sagan, Uma Breve História era “também um livro sobre Deus… ou talvez sobre a ausência de Deus”. Deus é citado 49 vezes no volume. Numa delas, Hawking chegou a Santo Agostinho (354-430) e à pergunta fundamental, a grande indagação que faziam ao filósofo inaugural do cristianismo: “O que Deus fazia antes de criar o universo?”. Ao que Agostinho respondia, numa linda boutade: “Antes que Deus criasse o céu e a terra, nada havia”. Em suas palestras, Haw­king costumava dizer que “Deus não é suficiente para explicar a origem do universo”, e, dada essa insuficiência, ele passou a vida tentando buscar o princípio com “P” maiúsculo — e nessa trilha alcançou o Big Bang e os buracos negros, pilares de seu pensamento, a gênese de uma contribuição indelével para a ciência. “Suas teorias abriram um universo de possibilidades que estão sendo exploradas pela Nasa e pelo mundo”, escreveu a agência espacial americana em nota oficial. “Que você continue voando como o Super-Homem.”

É certo que continuará voando, como uma estrela que nunca se apaga, a mais brilhante da cosmologia moderna, porque suas ideias podem perdurar pela eternidade. Filho de pais intelectuais, ambos ligados à área das pesquisas médicas, Haw­king começou cedo a refletir sobre as questões do espaço e do tempo. Na escola, era mau aluno, tanto que aprendeu a ler e escrever apenas aos 8 anos e tinha notas ruins em matemática. No entanto, já aos 12 debatia com os colegas sobre como tudo o que existe teria surgido, o que lhe rendeu o apelido de Einstein. Chegou a recordar: “Uma das coisas sobre as quais falávamos era a origem do universo e se foi necessário um Deus para criá-lo e levá-lo adiante”. Tamanha curiosidade infantil o seguiu na vida acadêmica, pelas universidades de Oxford e Cambridge. Na segunda, depois de consagrado, foi convidado a ocupar a cátedra de matemática mais cobiçada do mundo acadêmico, que fora exercida por figuras históricas do calibre de Isaac Newton, Charles Babbage e Paul Dirac.

Seu interesse pelo estudo dos buracos negros, que o fez imensamente famoso, e ancorou a vendagem de Uma Breve História do Tempo, surgiu num momento “eureca”, em 1970, pouco antes de dormir: “Ao deitar, me dei conta de que poderia aplicar aos buracos negros a teoria de estrutura causal que eu havia desenvolvido para os teoremas da singularidade”. É uma frase complicada para leigos, mas seu significado acabou por chacoalhar os alicerces da física.

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Antes de Hawking, pouquíssimo se sabia desses colossais e enigmáticos fenômenos do cosmos. Especulava-se que os buracos negros sugariam tudo ao redor, inapelavelmente. Porém, tal conclusão não combinava com muitas das bases da física, sobretudo com a ideia de que nenhuma informação contida nas partículas poderia se perder completamente. Nem explicava como os buracos negros poderiam ter o que se chamava de “horizonte entrópico” — uma medida termodinâmica que traduz o completo caos. Para ser entrópico, seria preciso liberar calor. Se há calor, quer dizer que algo escapava dos buracos negros, e também da compreensão dos mais geniais cientistas de seu círculo.

Hawking apresentou soluções para essa charada. Primeiro, ao supor que no centro dos buracos negros haveria uma singularidade, ou seja, um ponto ínfimo, de densidade dita infinita, capaz de sugar até a luz. Depois, e esse foi seu grande salto, estimou que algo deveria, sim, escapar da imensa força gravitacional desses fenômenos originados quando estrelas entram em colapso. E o que se libertaria da mais segura das prisões do universo? Para chegar a uma resposta, Hawking teve de recorrer à física quântica, aos estudos que, numa mistura de imaginação e matemática, explicam o que ocorre no mundo menor que o átomo. Segundo essa linha, cada partícula existente possui um par, uma antipartícula. Assim, quando uma matéria fosse sugada, uma dessas partículas, gêmea mas de sinal trocado, escaparia do presídio gravitacional, deixando a outra para trás. A essa fugitiva se deu o nome de “radiação Hawking”.

Inabalável – Sem se mexer ou falar, escreveu best-sellers e hipóteses geniais (Paul E. Alers/NASA/AFP)

Todavia, e como é praxe na ciência, as elucidações conduziram a outros enigmas, novíssimos. O principal deles constitui um paradoxo. Ao beber tanto da física ligada à teoria da relatividade de Einstein, referente aos fenômenos cósmicos, quanto da física quântica, Hawking mesclou hipóteses conflitantes. Por exemplo, para a física mais tradicional, os buracos negros exterminariam toda a informação (os dados contidos, como se fossem bytes que circulam pela internet) que fosse sugada; para a física quântica, no entanto, seria impossível destruir qualquer informação que viaja entre planetas, estrelas e galáxias. Como ele resolveu o impasse? Propondo que os tais bytes das partículas não se perderiam, mas retornariam de outra maneira, inúteis. “É como queimar uma enciclopédia: a informação contida na enciclopédia tecnicamente não se perde caso a fumaça e as cinzas sejam guardadas, mas é muito difícil de ser lida”, disse o cientista. Iconoclasta, Hawking, acompanhado do americano Kip Thorne, outra referência das pesquisas gravitacionais, fez uma aposta — o inglês era fã de jogatinas desde criança — sobre esse nó (haveria total destruição de toda a informação ou não?) com o igualmente renomado cientista John Preskill. Não se sabe exatamente quais eram os termos da provocação, mas Preskill ganhou, o que levou Hawking a lhe dar de presente uma enciclopédia de beisebol. “Mas talvez devesse ter dado apenas as cinzas”, brincou o físico britânico.

POP – Nos anos 90, virou personagem do desenho americano ‘Os Simpsons’ (//Reprodução)

Mesmo depois do unânime prestígio, dos best-sellers, da fama e das limitações corporais que culminaram com ele conseguindo se comunicar apenas por meio de um computador com um sensor atrelado a movimentos da bochecha, o gênio permaneceu ativo, com sua mente poderosa. Há dois anos, publicou um polêmico artigo sobre o velho paradoxo — para ser entrópico, seria preciso liberar calor; se há calor, algo escapava dos buracos negros — e ensaiou uma outra resposta. Segundo a nova suposição, as partículas ficariam estacionadas no chamado horizonte entrópico (o limiar) do buraco negro, à espera de ser expelidas junto com a radiação Hawking. Mais recentemente, construiu outro raciocínio: “Buracos negros não são tão negros quanto parecem. Eles não são essa prisão perpétua que todo mundo pensa. Coisas podem sair de lá para nosso universo ou para outro, paralelo”.

Se suas teorias são tão revolucionárias, por que, afinal, ele não ganhou um Nobel de Física? — alguns podem se perguntar. Ocorre que, na prática, nenhuma de suas hipóteses foi comprovada empiricamente, requisito básico para receber a láurea. Se é assim, suas teses poderão ser desmentidas um dia? É pouco provável, dada a fortaleza de suas conjecturas. Mas isso pode ocorrer. E, no entanto, Hawking jamais perderá valor, nunca deixará de inspirar.

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Sem medo de viver – Hawking superou a deficiência, viajou por todos os continentes e voou em gravidade zero (RIX/FSP/LK/AFP)

Foi assim com figuras como Galileu, Newton e Einstein, cujas ideias foram questionadas ao longo de séculos. A influência de Hawking, como a de seus pares de outras épocas, é definitiva. Disse a VEJA o astrofísico americano Brian Greene, autor de O Universo Elegante e um de seus herdeiros intelectuais: “Stephen Hawking era um pensador extraordinário. Ele transformou nossa compreensão do espaço e do tempo. Sua visão profunda sobre os buracos negros — mostrando que eles não são completamente negros e absorventes, mas sim que podem retornar a informação que pegam para si — nos mantém ocupados há quarenta anos e continuará a fornecer alimento para o futuro. Quando a jornada para fundir nossa compreensão da gravidade e da física quântica estiver completa em algum momento da história da humanidade, os cientistas olharão para as contribuições de Hawking com enorme gratidão”.

Para além das conquistas científicas, Hawking faz história como símbolo da resiliência humana. Diante da doença degenerativa que levou médicos a decretar, quando ele era ainda muito jovem, que teria meros quatro anos de vida, manteve-se impávido. Viajou por todos os continentes — inclusive a Antártica. Foi adorado pelos maiores artistas, governantes e, claro, cientistas de seu tempo. Mesmo com a linguagem limitada a movimentos singelos de dedos e da face, escreveu artigos e livros que são alicerces da civilização. E ainda se casou duas vezes e teve três filhos. Levava uma vida muitas vezes banal. E a partir dessa banalidade mudou nossa compreensão do universo.


O verbatim do gênio

Acho que seria um desastre. Os alienígenas provavelmente estão muito mais avançados do que nós

Sobre um hipotético encontro de humanos com ETs

As minhas expectativas foram reduzidas a zero quando eu tinha 21 anos (idade em que foi diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica). Desde então, tudo tem sido um bônus.

Sobre a morte

A vida seria trágica se não fosse engraçada.

Sobre a vida
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Sem imperfeição, eu e você não existiríamos.

Sobre nós todos

Einstein estava errado quando disse que ‘Deus não joga dados’. A existência dos buracos negros sugere que Deus não apenas brinca de dados, mas também nos confunde ao jogá-los onde não podem ser vistos.

Sobre os buracos negros

Se encontrarmos uma resposta para isso, será o maior triunfo da razão humana, porque conheceríamos a mente de Deus.

Sobre a origem do universo

Com reportagem de André Lopes


Uma sobrevida excepcional

O primeiro – Lou Gehrig, que resistiu apenas três anos com a doença (Baseball History of US/.)

Stephen Hawking conviveu 55 anos com uma doença incapacitante, a esclerose lateral amiotrófica (ELA). De origem neurológica, a condição ataca os neurônios motores do cérebro e da medula espinhal, fazendo com que percam a capacidade de transmitir os impulsos nervosos responsáveis pelos movimentos do corpo. Os sintomas são devastadores e se materializam com rapidez. Aos primeiros sinais, a doença já dificulta gestos simples, como segurar um copo, fechar o zíper, fazer a barba. Com o tempo, a pessoa enfrenta quedas constantes, não consegue subir escadas, até perder totalmente a autonomia motora. Hawking, ao sofrer os primeiros efeitos da condição, aos 21 anos, ouviu dos médicos que não viveria mais de quatro anos, o tempo comum diante desse diagnóstico. O jogador americano de beisebol Lou Gehrig, o primeiro chamar a atenção mundial para a doença, nos anos 30, viveu apenas três anos. A partir dele, a ELA passou a ser também conhecida como “doença de Lou Gehrig”.

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A sobrevida de Hawking é um mistério para a ciência. Diz o geneticista brasileiro Salmo Raskin, especialista no tema: “Especula-se até mesmo a probabilidade de Hawking não ter sido portador da ELA, mas de outro mal degenerativo muito semelhante e ainda desconhecido”. Apesar da busca incessante por medicamentos, o arsenal para o controle da doença restringe-se a terapias para amenizar o desconforto e, no Brasil, a um único remédio, que permite aumentar a sobrevida do paciente. Não há cura. A ELA é a terceira doença neurodegenerativa mais comum, atrás do Al­zhei­mer e do Parkinson. No mundo, acomete cerca de 400 000 pessoas. No Brasil, são 12 000.

Thaís Botelho

(VEJA/VEJA)

Publicado em VEJA de 21 de março de 2018, edição nº 2574

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