Erros que dão certo
Livro mostra como até mesmo as mentes mais brilhantes já se enganaram — e que isso abriu portas para o desenvolvimento de suas áreas de atuação
A penicilina, o primeiro antibiótico da história, que levaria a um largo avanço na medicina, surgiu de um erro de procedimento. Depois do fim da I Guerra, o bacteriologista escocês Alexander Fleming (1881-1955), que durante o conflito atuara como médico militar, voltou para o seu antigo emprego, no Hospital St. Mary’s, em Londres. Lá, passou a se dedicar à busca de fórmulas que ajudassem a aliviar mazelas que acometiam os soldados vindos do front. Em 1928, Fleming saiu de férias e, por puro descuido, esqueceu-se de descartar placas repletas de culturas de microrganismos. A atitude poderia ter resultado na repreensão de seus superiores; afinal, não era nada seguro deixar à mostra, apodrecendo, materiais biológicos nocivos. Ao regressar, o médico percebeu que uma das amostras, de bactérias do gênero Staphylococcus, estava tomada por um bolor. Mais do que isso: ao redor da colônia não havia mais bactérias. Foi assim que Fleming descobriu um fungo, o Penicillium, capaz de produzir substâncias bactericidas. Com ele, criou a penicilina. A invenção lhe renderia o Nobel de Medicina em 1945.
O ERRO
Construiu uma tese, hoje conhecida como pangênese, segundo a qual os organismos produziriam partículas que transmitiriam as características hereditárias
O avanço permitido pela falha
Para contradizer a tese da pangênese, o botânico austríaco Gregor Mendel (1822-1884) formulou experimentos com plantas que o levaram à descoberta da existência dos genes
Como em qualquer outra atividade humana, o erro é um companheiro de incômoda fidelidade também dos cientistas, mesmo daqueles considerados, com justiça, o suprassumo em seu campo de atuação. Foram os erros, no entanto, que muitas vezes os levaram a importantes descobertas, como no caso de Fleming, ou — o que é igualmente espetacular — possibilitaram outros avanços em suas respectivas áreas, conduzidos não só por discípulos como também por adversários. É essa formidável característica da ciência que dá corpo ao livro Tolices Brilhantes, do astrofísico romeno Mario Livio, publicado no Brasil pela Editora Record. Na obra, o autor discorre sobre equívocos da lavra de cinco nomes de peso: Charles Darwin, Albert Einstein, Lorde Kelvin, Fred Hoyle e Linus Pauling (veja os quadros ao longo desta reportagem).
O ERRO
Defendia a ideia de que o universo seria estático e, para explicar sua posição, criou mentalmente um elemento batizado de constante cosmológica, que explicaria o equilíbrio cósmico
O avanço permitido pela falha
Incentivaram-se as pesquisas acerca da evolução do universo. Entre elas a do americano Edwin Hubble (1889-1953), astrônomo que comprovou a expansão contínua do cosmo
“É fundamental que o público perceba como os deslizes são parte essencial do progresso da ciência e, na verdade, claro, de qualquer trabalho humano, mas especialmente os do segmento criativo”, disse Livio a VEJA. “Se queremos que as pessoas pensem de forma inovadora, é preciso aceitar o fato de que disso faz parte o risco de elas cometerem erros grosseiros ao longo do caminho.” O problema é que são exatamente os representantes dos segmentos que o autor chamou de criativos, como os cientistas, os artistas etc., os primeiros a resistir a admitir o erro.
O ERRO
Estimou, por meio de cálculos errôneos baseados no nível de calor presente no interior do planeta, que a Terra teria 100 milhões de anos
O avanço permitido pela falha
Um discípulo, o engenheiro irlandês John Perry (1850-1920), recalculou a variação de temperatura no interior terrestre e chegou à idade de pelo menos 3 bilhões de anos; hoje, aposta-se em 4,54 bilhões
Em Tolices Brilhantes, Livio conta, por exemplo, como o matemático irlandês Lorde Kelvin (1824-1907) jamais aceitou que se equivocara no cálculo de qual seria a idade da Terra; para ele, 100 milhões de anos. Tal postura, de negação do equívoco, seria justificada pela mesma teoria que explica a ilusão de jovens empreendedores em relação a ideias que apenas eles julgam extraordinárias — motivo da falência de 42% das startups de tecnologia. Segundo o autor, a tese por trás dessa atitude é a da dissonância cognitiva, desenvolvida pelo psicólogo americano Leon Festinger (1919-1989). De acordo com Festinger, quanto mais comprometido está um indivíduo com a própria opinião, menos disposição ele tem para abandoná-la mesmo quando confrontado com evidências que derrubem sua convicção. Os registros de como Kelvin teria reagido de forma mercurial às hipóteses contrárias à sua provariam que o matemático não estava disposto a abandonar as três décadas de estudos que levaram aos seus cálculos — lamentavelmente errados, pois hoje se estima que o planeta tenha mais de 4 bilhões de anos.
O ERRO
Defendia a tese de que o universo é estacionário e que fabricaria matéria lenta e constantemente, em oposição à hipótese do Big Bang, hoje amplamente aceita
O avanço permitido pela falha
Numa ironia, estudos cuja meta era refutar o conceito de Hoyle acabaram por levar ao fortalecimento teórico da ideia do Big Bang — de que tudo o que existe teria surgido a partir da rapidíssima expansão do universo
O astrofísico inglês Fred Hoyle (1915-2001) — criador de uma tese sobre a formação de estrelas que é uma das bases de sua disciplina — também cometeu uma falha memorável ao tentar explicar, numa palestra proferida, via rádio, em 1949, como teria surgido o universo. Para ele, o cosmo seria estável e continuaria a produzir matéria, incessantemente. Ao afirmar isso, Hoyle debochou de uma hipótese concorrente da sua — a de que tudo teria aparecido a partir de uma rapidíssima expansão de um ponto chamado de “singularidade” — e apelidou essa ideia de Big Bang. Pois o avanço dos estudos demonstrou que ele é quem estava enganado. A teoria do Big Bang ganhou força, o nome colou, e ela é hoje a mais aceita para explicar a criação das galáxias, das estrelas — do universo.
O ERRO
Ao descrever a estrutura do DNA, sugeriu que ela era formada por uma ligação de três hélices. Se fosse assim, o DNA não seria categorizado como um ácido e, portanto, não poderia ter a função que executa
O avanço permitido pela falha
O conceito de Pauling inspirou seus colegas, em especial a dupla americana James Watson (1928) e Francis Crick (1916-2004), responsáveis pelo modelo de DNA hoje reconhecido — o de duas hélices entrelaçadas
“Jamais ficaremos livres de gafes, pois ideias não convencionais são necessárias para garantir o progresso. Entretanto, conceitos ‘exóticos’ também têm, invariavelmente, grande risco de estar equivocados”, observa Livio, com razão. No livro Por que Cometemos Erros (Editora Globo), o jornalista americano Joseph Hallinan explica como o ambiente em que vivemos influencia a nossa percepção das falhas. Ele defende a ideia de que, num mundo conectado, em que realizamos diversas tarefas ao mesmo tempo, dividindo a atenção entre smartphones, redes sociais, trabalho, família e tantas outras coisas, é preciso perceber que erros, apesar de amargos, são inevitáveis — e podem, sim, ser muito produtivos. Foi só depois de se equivocar muito que o empreendedor americano Henry Ford chegou à elaboração das linhas de montagem industriais, o fordismo, que permitiu a fabricação de automóveis em larga escala. Após o sucesso, Ford proclamou esta máxima histórica: “O fracasso é simplesmente a oportunidade para recomeçar de maneira mais inteligente”. Calcula-se que, ao longo da vida, uma pessoa tome cerca de 700 000 decisões, das quais vai se arrepender de 100 000. Não é preciso se mortificar por essas escolhas equivocadas. Isso é humano, demasiado humano. O segredo para conviver durante anos ao lado daquele companheiro incômodo e fiel que é o erro pode estar não apenas em admiti-lo, e assim, quem sabe, superá-lo, como também em imaginar que talvez ele — o equívoco, o engano, o deslize — possa ser o primeiro passo para o acerto de uma outra pessoa. Sim, o erro pode dar certo.
Publicado em VEJA de 5 de julho de 2017, edição nº 2537