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Epidemia de falências

Agora é a vez de os habitantes do Rio Grande do Norte sofrerem na pele as consequências dramáticas da inabilidade de seus governantes

Por Marcelo Sakate Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 31 jan 2018, 15h25 - Publicado em 5 jan 2018, 06h00

Virou uma triste rotina. A inépcia administrativa dos políticos explode no colo da população. Até pouco tempo atrás, isso se dava na forma de precariedade dos serviços prestados nas áreas de saúde, educação e transporte; mas, cada vez mais, a crise financeira dos estados interrompe a realização de outras atividades básicas do poder público. Desta vez, foram moradores e turistas do Rio Grande do Norte que se viram obrigados a enfrentar, amedrontados, a escalada da violência nos últimos dias de 2017, depois que policiais militares e civis decidiram entrar em greve em protesto contra o atraso no pagamento dos vencimentos de novembro e dezembro, além do 13º salário. Foi uma situação que se repetiu, ao longo do último ano, com servidores do Rio de Janeiro, do Rio Grande do Sul, de Minas Gerais e do Espírito Santo, quase sempre motivada pelo atraso salarial — no caso capixaba, policiais reclamaram da falta de reposição salarial da inflação. O número de crimes violentos (como homicídios) subiu 40% no Rio Grande do Norte nos últimos doze dias do ano passado, em relação ao mesmo período de 2016. Mais de 100 assassinatos foram registrados desde o início da paralisação. A situação só foi controlada com o envio de 2 800 homens das Forças Armadas para as ruas de Natal e Mossoró, a segunda maior cidade do estado. “Todos os indicadores, seja de morte, roubo, assalto, seja o que for, caíram verticalmente”, disse o ministro da Defesa, Raul Jungmann, ao avaliar a atuação dos militares.

Greve da Polícia no RN
MÃOS AO ALTO - O Exército patrulhando as ruas de Natal: população acuada pelas más decisões administrativas (Ney Douglas/VEJA)
(//VEJA)

Robinson Faria (PSD), governador potiguar, tentou resolver a crise da forma política usual: sem recursos para honrar os salários, mas sem tomar medidas estruturais que buscassem equilibrar as finanças estaduais, procurou articular um socorro emergencial de 600 milhões de reais diretamente com o presidente Michel Temer. “Estou focado em todas as medidas necessárias para que nada impeça que esses recursos cheguem ao nosso estado e às contas dos servidores o mais rápido possível”, disse o governador durante uma visita a Brasília, antes do Natal. Mais tarde, Faria chegou até a anunciar em rede social a liberação dos recursos. Dias depois, o Ministério da Fazenda vetou o repasse. O argumento foi um parecer do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União que desaprova a operação, por afrontar o princípio de equidade na transferência de recursos federais entre os estados. De fato, prestar ajuda ao Rio Grande do Norte — ou a qualquer outro estado em sério aperto financeiro — de forma intempestiva abriria um precedente perigoso para a União. Foi justamente para evitar essa ameaça e o desperdício no uso do dinheiro dos contribuintes que o Ministério da Fazenda encampou a aprovação no Congresso, no ano passado, de uma lei que institui um regime especial para a recuperação de estados em dificuldades. Em linhas gerais, exige-se que os governadores e deputados estaduais (que precisam dar o seu aval às medidas propostas) façam a lição de casa para equilibrar as contas locais antes de receber centenas de milhões de reais do governo federal. Caso contrário, sem um compromisso assumido em contrato nem o respaldo da lei, esses repasses milionários serviriam só como remendo para uma crise mais profunda.

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Pelo regime aprovado, estados em grave crise financeira só terão ajuda do governo federal (como a redução das parcelas de sua dívida com o Tesouro ou a autorização para que contraiam novos empréstimos no setor privado, com a garantia da União) se cumprirem uma série de pré-requisitos para pôr as finanças em ordem. São exigidas medidas como a proibição da criação de vagas pela máquina governamental, o congelamento de reajustes salariais além daqueles previstos em lei federal, a redução de isenções tributárias, o aumento da alíquota de contribuição na previdência local e um plano de privatização. O primeiro estado a aderir ao regime foi o Rio de Janeiro. O governador Luiz Fernando Pezão (PMDB) assinou o acordo em setembro e deu o tom do discurso. “É um momento em que a gente celebra dureza, e não fartura. O estado vai fazer um ajuste profundo”, disse Pezão na ocasião, em relação às medidas, que devem causar um impacto positivo de 27,3 bilhões de reais até 2020, entre o aumento de receitas e o corte de despesas.

Greve da Polícia no RN
MEDIDAS EMERGENCIAIS - O ministro da Defesa, Raul Jungmann, com o governador Robinson Faria: 2 800 homens no estado (Ney Douglas/VEJA)

Nos últimos dias do ano passado, o Rio Grande do Sul aderiu ao regime. “A caminhada é longa, mas os passos que estamos dando são consistentes e responsáveis”, disse o governador Ivo Sartori (PMDB) na cerimônia de assinatura do acordo com o governo federal. A adesão, no entanto, ainda precisa ser ratificada pela Assembleia Legislativa. Muitos deputados gaúchos insistem em negar a gravidade da situação e preferem recorrer à retórica de perda da autonomia do estado, ignorando males reais como o atraso de salários dos servidores, a interrupção do atendimento médico à população e a falta de policiamento nas ruas, para citar apenas três efeitos do caos financeiro.

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A recessão econômica explica apenas parte da crise nos estados. No passado, governadores e deputados aproveitaram um momento temporário de aumento das receitas para contratar despesas de forma permanente. Ou negligenciaram a escalada irrefreável dos gastos com aposentados. Essa equação criou um desequilíbrio profundo na maneira como os estados brasileiros são administrados. De 2010 a 2016 (ano do último dado consolidado pelo Tesouro), as receitas somadas de todos os 26 estados, mais o Distrito Federal, ficaram praticamente estáveis como proporção do produto interno bruto (PIB), enquanto as despesas com a folha salarial de servidores ativos e aposentados aumentaram o equivalente a 6,5 pontos porcentuais da receita líquida e os gastos com a administração pública subiram outros 3,4 pontos porcentuais. São recursos que tiveram de ser sacrificados em outras áreas. Em nove estados, as despesas com o funcionalismo igualam ou superam 60% do orçamento. Esse limite foi determinado pela Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2000, com o propósito de evitar o comprometimento de parcela excessiva dos recursos com essa finalidade, uma vez que existem compromissos ainda mais sagrados que competem aos estados, como o atendimento de saúde, o ensino fundamental e médio e a segurança pública (veja a tabela ao lado).

A frágil saúde financeira dos estados não permite antever uma solução rápida para a crise. Os acordos firmados pelos governos fluminense e gaúcho são o prenúncio de um ajuste duro que se impõe diante de uma realidade que veio para ficar, mas ao menos permitem enxergar um horizonte. Espera-se que o governador Robinson Faria e os deputados do Rio Grande do Norte — além das autoridades de outros estados em apuros — encarem as dificuldades e não apelem para subterfúgios. Só assim se estancarão os efeitos dramáticos da epidemia de falências dos estados brasileiros.

Publicado em VEJA de 10 de janeiro de 2018, edição nº 2564

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