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Ele já não fala de flores

Ídolo da esquerda nos anos 60, Geraldo Vandré ensaia um inusitado retorno à música pela via erudita e evita se pronunciar sobre a política atual

Por Sérgio Martins Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 27 abr 2018, 06h00 - Publicado em 27 abr 2018, 06h00

Geraldo Vandré mal olha para o entrevistador. Prefere contemplar a bela Praia de Tambaú, em João Pessoa, enquanto fuma o primeiro dos muitos cigarros que tragaria durante a tarde. A paisagem evoca uma memória da infância: o compositor conta que sua paixão pela aviação — que inspirou a música Fabiana, homenagem à Força Aérea Brasileira (FAB) — nasceu de tanto admirar os aviões que sobrevoavam os mares paraibanos, escoltando navios brasileiros durante a II Guerra Mundial. Suas respostas são em geral curtas e secas. E vai se frustrar quem deseja saber se o cantor tão associado aos protestos contra a ditadura militar hoje é da turma que chama impeachment de golpe — Vandré, de 82 anos, não quer comentar os eventos políticos do dia. Ele vem de um longo período de silêncio: seu último show ao vivo foi em 12 de dezembro de 1968, às vésperas da promulgação do AI-5; Das Terras de Benvirá, gravado em 1973, quando ele estava exilado em Paris, foi seu derradeiro registro em disco. Naquele mesmo ano, Vandré retornou ao país, depois de perambular por alguns países da Europa, pela Argélia e pelo Chile. Desde então, abandonou o nome artístico (que vem do nome do pai, Vandregiselo) e voltou a ser o advogado Geraldo Pedrosa de Araújo Dias. Neste 2018, porém, ele vem ensaiando um discreto retorno. Em março, foi homenageado em duas noites de show na sua João Pessoa natal. Foram apresentadas as peças para piano que ele compôs com Beatriz Malnic, e a Orquestra Sinfônica da Paraíba tocou versões orquestrais de seus maiores sucessos — entre eles Para Não Dizer que Não Falei de Flores (Caminhando), música emblemática dos protestos contra a ditadura. Em raro momento no palco, o próprio Vandré cantou Caminhando ao fim do espetáculo, acompanhado pelo violonista Alquimides Daera e pelo público, que clamou ouvir a composição na voz de seu autor. Na mesma ocasião, foi lançado o livro Cantos Intermediários de Benvirá, com poemas do compositor escritos ao longo de 1973. “Não cantei no Brasil, cantei na Paraíba”, dispara Vandré.

Nascido em João Pessoa, em 1935, Vandré mudou-se para o Rio de Janeiro em 1951. Na então capital federal, fez amizade com talentos como o pianista Luiz Eça e os violonistas Baden Powell e Carlos Lyra — o último foi seu parceiro em Quem Quiser Encontrar o Amor e Aruanda. O disco de estreia, marcado pela bossa nova e pela música nordestina, saiu em 1964. Dois anos depois, Disparada, parceria de Vandré com Théo Barros, dividiu com A Banda, de Chico Buarque, o primeiro lugar do Festival de Música Brasileira. Vandré não participou da passeata contra a guitarra elétrica, de 1967, e é fã de jazz, mas desprezava o que julgou ser uma influência estrangeira excessiva na música brasileira dos anos 60 — daí seu estranhamento com a turma do tropicalismo.

Para Não Dizer que Não Falei de Flores (Caminhando) foi a bênção e a maldição de Vandré. Essa balada simples, de dois acordes, é sua composição mais lembrada — bem mais do que canções mais complexas e belas como De Serra, de Terra e de Mar. O autor não gosta que a definam como hino de esquerda: “Caminhando é um chamamento, uma crônica da realidade. Canção de protesto é coisa de americano”. Millôr Fernandes chegou a chamar Caminhando de “Marselhesa brasileira”, mas Vandré também desdenha o elogio: “Eu já acho que a Marselhesa é a Caminhando francesa”. A música foi regravada por Simone, interpretada em português por Joan Baez num show que a musa do folk de protesto americano realizou no Brasil em 2014 (Vandré fez uma aparição no palco), e até ganhou versão do furioso grupo de rock Charlie Brown Jr. Em registro mais recente e curioso, a canção que era tida como subversiva foi abraçada por um policial: Samuel Lago, sargento da PM de São Paulo, vem tentando a sorte como cantor com Caminhando no repertório. “Eu adotei o refrão ‘quem sabe faz a hora, não espera acontecer’ e faço músicas sobre a realidade do policial brasileiro”, diz.

A seara popular parece esgotada para Vandré, que acalenta um projeto ambicioso: compor uma sinfonia. “Hoje não existe nada mais subversivo que um subdesenvolvido erudito”, diz. A estreia ficaria a cargo da Sinfônica da Paraíba, estado que tem sido generoso com o filho célebre: Vandré está desde dezembro em João Pessoa, a convite da secretaria estadual da Cultura — uma iniciativa que custou cerca de 68 000 reais aos cofres públicos (“sou a p*** mais cara do estado”, declarou em uma entrevista coletiva poucos dias antes do show em sua homenagem). E, para não dizer que ele não fala mais de flores, Vandré ainda se permite expressar uma posição política — não muito fácil de decifrar: “Na mão esquerda, trago uma certeza. Na direita, uma garantia. Mas posso trocar de mão”, proclama, enquanto a tarde se esvai na Praia de Tambaú.

Publicado em VEJA de 2 de maio de 2018, edição nº 2580

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