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É preciso ter santo forte

Após colher o sucesso de 'Avenida Brasil' e a decepção com 'A Regra do Jogo,' João Emanuel Carneiro aposta na Bahia do axé e dos orixás em 'Segundo Sol'

Por Marcelo Marthe, de Salvador
Atualizado em 8 Maio 2018, 10h27 - Publicado em 4 Maio 2018, 06h00

Alheio às minúcias do candomblé, o noveleiro João Emanuel Carneiro não sabe se é filho de Xangô ou de Obaluaiê. “Já me falaram dos dois. Não tenho certeza”, diz. De uma coisa, o filho de orixás desconhecidos nunca teve dúvida: antes de escrever uma novela que retrata a Bahia de todos os santos, era prudente entender-se com as entidades locais. No fim do ano passado, enquanto desfrutava uma temporada em Salvador para entrar no clima de Segundo Sol, a trama do horário das 9 de sua autoria que estreia no dia 14 na Globo, Carneiro foi a um ritual no Gantois, o terreiro mais famoso da cidade. Enquanto pais de santo batiam cabeça e fiéis davam oferendas, passou seu recado: “Rezei e pedi permissão para contar minha história naquele lugar tão especial”.

Segundo Sol vai coroar uma tendência de novelas fora do eixo urbano Rio-São Paulo. À exceção da carioca Malhação, a diversidade de paisagem hoje impera na emissora. O folhetim das 6, Orgulho e Paixão, mostra o Vale do Café (no interior fluminense) do começo do século XX. Na faixa das 7, Deus Salve o Rei oferece um mundo medieval sem pé nem cabeça. A recém-lançada Onde Nascem os Fortes, da faixa das 11, se passa no sertão nordestino moderno. Às 9, por fim, O Outro Lado do Paraíso, com seu irretocável exame da elite de Palmas, cederá espaço a uma Bahia contemporânea. “Estava na hora de sair um pouco do Rio. Não tem mais o que explorar, precisamos dar uma respirada”, diz o diretor de núcleo Dennis Carvalho. Além do cansaço pela repetição, outro fator não deve ser menosprezado: ficou difícil de engolir aquele Rio ameno da ficção logo depois de trombar com o Rio real cheio de crime e notícias ruins no Jornal Nacional.

Não só os orixás, mas também as autoridades baianas deram sua bênção a Segundo Sol: do famigerado “apoio logístico” da Secretaria de Turismo de Porto Seguro, no sul do estado, à mão da prefeitura de Salvador para mudar o trânsito durante gravações, a Globo contou com mil facilidades. No começo de abril, VEJA acompanhou a última e a mais ambiciosa dessas cenas externas: o Carnaval de Salvador foi recriado pela emissora no Farol da Barra, com direito a trio elétrico, camarote no tradicional Edifício Oceania e 345 figurantes.

Folia muda - A diretora Maria de Médicis e Adriana Esteves ao fundo: a arte de domar 345 figurantes (e seus celulares) (Sergio Zalis/TV Globo/Divulgação)

A novela trata de personagens que buscam uma segunda chance na vida. O mocinho Beto Falcão (Emilio Dantas) fará um cantor de axé dado como morto em um acidente de avião, em 1999. Como ninguém sabe que ele sobreviveu, Beto, cuja carreira até então estava em decadência, passará a curtir em segredo a explosão das vendas de seus CDs, provocada pela comoção com o acidente. Sua cara-metade é Luzia (Giovanna Antonelli). Marisqueira rústica do sul da Bahia e mãe solteira de dois filhos, ela se envolve com o cantor, agora rico e disfarçado de zé-ninguém. Mas Luzia é afastada dele por armação de uma dupla de vilãs, a abilolada Karola (Deborah Secco) e a todo-poderosa cafetina e promoter do Carnaval de Salvador Laureta (Adriana Esteves). A marisqueira foge para a Islândia e volta de lá, anos depois, transformada em cantora e DJ descolada. “Ninguém vive tanto tempo num lugar como a Islândia impunemente”, diz Bjork, ops, Giovanna.

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Há um paralelo entre autor e personagens: o próprio Carneiro reclama seu segundo sol na TV. Quando era tido como jovem prodígio pela Globo, Carneiro só colecionou êxitos, de Da Cor do Pecado (2004) a, sobretudo, Avenida Brasil (2012) — a última trama das 9 capaz de galvanizar o país inteiro e desbravadora de caminhos para uma providencial renovação das novelas. Mas a imagem de infalível criador de sucessos sofreu um revés com A Regra do Jogo (2015), seu trabalho mais recente. A novela era fraca de ibope e não empolgou ninguém. Ainda que minimize o mau desempenho (noveleiros nunca empregam a palavra “fracasso”), Carneiro dá sinais de que, aos 48 anos, virou gato escaldado. Cercou-se de uma trinca de atrizes que já brilharam em seus folhetins (confira no quadro na pág. ao lado). Aposta na música baiana para criar empatia instantânea com a audiência. E realçará o romantismo e os laços familiares, não mais as conspirações de improváveis irmandades criminosas de A Regra do Jogo. “Aquela era uma novela soturna, que causava mau humor”, diz um executivo da Globo. Com Segundo Sol, Carneiro pretende investir na leveza: “Quis fazer uma história que pega direto na emoção”.

Para fechar o corpo, talvez ele deva tomar mais um banho de sal grosso até o dia 14: a artilharia nas redes sociais começou bem antes da estreia. “Nem sabem como é a novela e já me colocaram no meio do tiroteio”, diz. Tão logo se anunciou que retrataria a Bahia, atores “da terra” reivindicaram mais espaço. Na semana passada, a escalação ensejou debate sobre cotas raciais na TV: Segundo Sol incorreria em discriminação ao valer-se de atores brancos para representar uma cidade de população majoritariamente negra. De fato, sete em cada dez habitantes de Salvador declaram-se negros ou pardos, e apenas meia dúzia dos trinta personagens centrais (ou 20% do total) são negros. Mas a gritaria revela uma certa hipocrisia misturada com desinformação. Cobrar paridade estatística na novela é como exigir que o axé tenha mais estrelas negras. Para cada Carlinhos Brown, a elite do gênero exibe uma fieira de rostos brancos, como Ivete Sangalo, Claudia Leitte, Luiz Caldas ou Saulo Fernandes — que inspirou, aliás, o protagonista Beto Falcão. Além disso, o segundo personagem masculino em relevância é vivido por um negro baiano. O núcleo de Fabrício Boliveira deverá expor o preconceito: Roberval, seu personagem, é filho de uma empregada negra e de seu patrão branco.

Indiferente à querela, a Bahia recebeu as gravações de Segundo Sol com animação. A equipe ficou uns tempos trabalhando naquela dureza das praias de Porto Seguro, Trancoso e Espelho. “Está todo mundo bronzeadíssimo. Passei três semanas gravando de biquíni”, diz a diretora Maria de Médicis. Em Salvador, armou-se um circo divertido. Maria comandava no asfalto, de microfone, a turba de figurantes. Operou-se ali um paradoxo: a folia muda. “Atenção, figuração: muita animação, só que em silêncio, para não atrapalhar as falas dos atores”, ordenava. As instruções aos músicos em cima do trio elétrico: “Não podem bater nos tambores, só fingir”. Para dar realismo, a Globo distribuiu 500 latinhas de cerveja de marcas fictícias. Mas houve vacilo num detalhe: no Carnaval de 1999 não existiam os smartphones que os foliões silenciosos trouxeram à gravação. “Não vou tomar dura por causa de gente com celular querendo tirar foto com ator famoso”, ralhou a certa altura o coordenador dos figurantes (que ganhavam de 50 a 200 reais pelo trabalho, conforme o tamanho da participação). Menos guerra e mais axé, meu povo.


As três carneirinhas

Confete - Deborah, Adriana e Giovanna: “gênias máximas” em cena (Sergio Zalis/TV Globo/Divulgação)

A simbiose entre noveleiros e suas estrelas é uma tradição que persiste na Globo. Parcerias assim, afinal, resultam em personagens bem defendidas em cena. Em Segundo Sol, João Emanuel Carneiro exibe três “carneirinhas” de luxo: Deborah Secco, da qual extraiu humor abilolado com a Maria do Céu de A Favorita (2008); Giovanna Antonelli, que fez a golpista Atena de A Regra do Jogo (2015); e Adriana Esteves, intérprete da megera suburbana que consagrou tanto autor quanto atriz: a inesquecível Carminha de Avenida Brasil (2012).

As três rasgam seda para Carneiro quase com o mesmo entusiasmo com que trocam elogios hiperbólicos. “São duas mulheres generosas”, diz Giovanna. “Elas têm técnica, controle absoluto”, faz coro Adriana. “As duas são gênias máximas da interpretação”, arremata Deborah. A devoção convive com a ansiedade pela estreia. “Preciso desse axé todo. Sou cheia de medos”, afirma Adriana. A tensão é dissipada com a “entrega” no set. Numa briga de suas personagens, Deborah e Giovanna dispensaram dublês. “O jogo é com tudo, com paixão intensa. Observei tudo de longe”, conta Adriana. Gravar, na Bahia, um folhetim do autor que idolatram — o que mais falta? Maridões “da terra” por perto, claro. Só Giovanna não teve a regalia. “Vlad gosta de ver eu me apropriando do sotaque dele”, diz Adriana (o marido, Vladimir Brichta, mineiro de nascimento e baiano por adoção, é antagonista na novela). Deborah ia ficar solteira, mas seu marido, o modelo baiano Hugo Moura, ganhou um papel de última hora. Será um garoto de programa.

Publicado em VEJA de 9 de maio de 2018, edição nº 2581

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