Carta ao Leitor: Sinais que vêm de Roma
À parte o simbolismo religioso, as canonizações têm um propósito bastante terreno: reforçar as bases da Igreja Católica entre seus fiéis
Poucas cerimônias são tão solenes quanto a missa de canonização de um santo católico. O papa preside os ritos diante de uma multidão de milhares de devotos do mais novo membro do panteão da fé. Em júbilo, a audiência costuma expor sinais vívidos de alegria e comoção, paroxismo idealizado especificamente para celebrar a conexão entre o humano e o divino. Os santos e as santas, para a Igreja, são homens e mulheres que alcançaram um status de caridade, bondade e dedicação religiosa único, que lhes dá a capacidade de encaminhar a Deus as súplicas de seus semelhantes e distribuir as ações de graça advindas do Todo-Poderoso — em vida ou depois de mortos.
Neste domingo, 13, a Praça de São Pedro, no Vaticano, será palco de um desses momentos: a cerimônia de admissão da baiana Maria Rita de Souza Brito Lopes Pontes, a irmã Dulce, nesse círculo rarefeito da Santa Sé. Com o título de Santa Dulce dos Pobres, a religiosa, que nasceu e morreu em Salvador, passa a fazer companhia a Santo Antônio de Sant’Ana Galvão, ou São Frei Galvão, brasileiro canonizado em 2007 pelo papa Bento XVI, como os dois bem-aventurados pela fé nascidos em solo brasileiro.
À parte o simbolismo religioso, as canonizações tinham um propósito bastante terreno: reforçar as bases da religião entre seus fiéis, oferecendo-lhes exemplos de abnegação e virtude a ser seguidos e idolatrados. Com pouco mais de 120 milhões de fiéis, o Brasil ainda é o maior país católico do mundo. Mas trata-se de um rebanho com ovelhas cada vez mais arredias. Em 1980, ano em que João Paulo II tornou-se o primeiro papa a pisar — e beijar — o solo nacional, o contingente apostólico romano perfazia quase 90% da população. Quando frei Galvão virou santo, apenas 64% brasileiros seguiam a doutrina do Vaticano.
Em meio a um episódio e outro, o catolicismo se debateu entre o expurgo da Teologia da Libertação, o domínio dos conservadores e a ascensão dos carismáticos. Também testemunhou a impressionante expansão dos evangélicos — de 6,6% da população, em 1980, para 22%, em 2010. O IBGE calcula que nesse período a Igreja Católica perdeu mais de 1,7 milhão de seguidores, uma sangria que não dá sinas de estancar como prova a crescente influência dos neopentecostais na política e na sociedade. O papa Francisco, argentino de vertente liberal e progressista, conhece de perto os percalços da fé no Brasil e sabe que é preciso agir. Um recurso que possui é a canonização de brasileiros — a fila de candidatos é grande e já conta com quarenta nomes. São as peculiaridades desse processo complexo e fascinante, com regras que remontam a mais de 400 anos, que VEJA revela nesta edição.
Publicado em VEJA de 16 de outubro de 2019, edição nº 2656