Carta ao Leitor: Quando a fé move o Estado
Os remédios mais eficazes contra a gravidez precoce, como demonstra a experiência inglesa, são a educação e a liberdade de escolha
Um país profundamente religioso, mas que não pertence a nenhuma religião. Assim se fez o Brasil a partir de 1891, quando a segunda Constituição da República determinou a separação entre Igreja e Estado, posição mantida em todas as Cartas seguintes, incluindo a mais recente delas, a de 1988. O princípio do Estado laico foi inspirado nos ideais da Revolução Francesa (“Liberdade, Igualdade e Fraternidade”) e representa uma grande conquista. Ele garante o equilíbrio no direito ao exercício das diversas manifestações da fé, sem que o governo imponha nenhuma delas sobre as demais. Desde a chegada de Jair Bolsonaro ao poder, no entanto, as fronteiras que sempre demarcaram bem esses territórios em nossa tradição democrática tornaram-se indesejavelmente fluidas. Infelizmente, o slogan do presidente (Brasil acima de tudo, Deus acima de todos) vem se materializando em diferentes ações governamentais — boa parte delas aparece na forma das chamadas pautas conservadoras, feitas sob medida para agradar ao eleitorado e à base política evangélica do governo.
O problema fica ainda maior quando discussões eminentemente técnicas começam a ser contaminadas com esse viés, a exemplo do que ocorre agora com a proposta da ministra Damares Alves de fazer da abstinência sexual um dos pilares do programa de combate à gravidez precoce no Brasil. A titular da pasta da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, que é pastora da Igreja Batista e declarou certa vez ter visto Jesus Cristo em uma goiabeira, já mandou recolher cartilhas sobre métodos anticoncepcionais distribuídas a alunos dos ensinos fundamental e médio — um material que, segundo ela, pode provocar a erotização precoce dos jovens. Ainda de acordo com as crenças de Damares, adiar a iniciação sexual ajuda a evitar a legalização da pedofilia. Essas e outras ideias disparatadas sobre o assunto seguem na contramão das políticas públicas mais eficazes adotadas mundialmente contra a gravidez precoce.
Com um programa exemplar de ensino sexual nas escolas, a Inglaterra diminuiu quase pela metade o problema nos últimos dez anos. No mesmo período, registrou-se também naquele país uma queda expressiva no número de abortos (uma prática garantida pela lei britânica, ao contrário do que ocorre por aqui). Olhando-se com muita boa vontade, um dos poucos méritos de Damares foi pôr em pauta a discussão sobre um antigo drama nacional. O Brasil registra quase 50% mais casos de gravidez precoce em comparação com a média mundial. Já passou da hora de enfrentar esse problema antigo, porém os remédios mais eficazes, como demonstra a experiência inglesa, são a educação e a liberdade de escolha. Sem preconceito — e com o devido respeito à separação de assuntos e interesses entre Igreja e Estado.
Publicado em VEJA de 5 de fevereiro de 2020, edição nº 2672