Carta ao Leitor: O silêncio incômodo
Os atos de hostilidades às artes precisam acender um sinal amarelo diante dos olhos de todos os democratas
Logo que veio a público a decisão da Justiça de proibir o cantor Caetano Veloso de fazer um show em um acampamento de sem-teto em São Bernardo do Campo, as dúvidas apareceram. Será que a proibição foi realmente motivada por falta de segurança no local, como escreveu em sua decisão a juíza Ida Inês Del Cid, da 2ª Vara da Fazenda Pública? Ou terá sido mais um ato mal disfarçado de hostilidade à liberdade de expressão artística? Sem ter uma resposta para essas indagações, Caetano não se furtou a uma constatação sombria. “É a primeira vez que sou impedido de cantar no período democrático”, disse ele.
É possível, até mesmo provável, que a segurança tenha sido a razão da proibição. Afinal, um acampamento de sem-teto, com dezenas de barracos de lona e madeira, materiais altamente inflamáveis, com entrada e saída única, talvez não ofereça realmente a estrutura mínima necessária para um show. O problema é que o ambiente que se criou no Brasil atual, com manifestações barulhentas contra exposições de arte, não favorece as hipóteses benignas de que a liberdade de expressão é um direito inabalável.
Os atos de hostilidade às artes — um show de música ou uma exposição de pinturas, talvez daqui a pouco também uma peça de teatro ou um livro — precisam acender um sinal amarelo diante dos olhos de todos os democratas, pois nenhum traço de censura é aceitável num regime de plenas liberdades. Apesar das imensas diferenças de contexto e de época, nunca é excessivo repisar a lembrança de que a Alemanha nazista começou seu mergulho autoritário disparando contra as exposições de arte — a chamada “arte degenerada”, que supostamente expressava apenas loucura, descalabro, depravação. Deu no que deu.
Nesse campo, infelizmente o Brasil não tem produzido boas notícias nos últimos tempos. Agora mesmo a esquerda andou tentando impedir a exibição no Recife de um filme que conta a história de um guru da direita, enquanto a direita, que anda mais ativa nessa área do que seus adversários ideológicos, passa um abaixo-assinado para tentar impedir a palestra em São Paulo de uma pensadora de esquerda. É relevante que os democratas não se calem diante dessas nuvens de retrocesso. Na defesa das liberdades públicas, é preferível errar ao fazer uma denúncia exagerada a errar ao promover uma vigilância tímida.
Em outras palavras, é sempre melhor encontrar um jeito de deixar Caetano cantar do que ficar debaixo desse silêncio incômodo.
Publicado em VEJA de 8 de novembro de 2017, edição nº 2555