Carta ao Leitor: O caminho de volta
É cedo, ainda, para conhecermos o planeta a ser reinaugurado; no Brasil, nos próximos dias, a cautela será o 'novo normal'
Não há dúvida da triste estatística brasileira na pandemia — atrás apenas dos Estados Unidos em número de casos de Covid-19 e a caminho de aparecer em incômodo segundo lugar no número de mortos, na casa dos 40 000. A constrangedora tentativa do governo federal de empurrar para debaixo do tapete a contagem oficial foi comportamento infantil, do ponto de vista da gestão, e inaceitável, no respeito com a sociedade. Uma parte das autoridades de Brasília parece não ter entendido ainda a gravidade do momento histórico a que fomos todos submetidos pela disseminação do vírus — um ponto de mudança já incontornável, com reflexos no presente e no futuro, como só ocorreu com a humanidade em tempos de guerra. Um modo de perceber a relevância extraordinária da atual travessia, esta que alguns teimam desdenhar, é olhar para os países que, estando alguns passos adiante e tendo enfrentado o isolamento social com rigor, começam a retomar a normalidade possível. Em Paris, Londres e Madri, por exemplo, vê-se gente nas ruas, parte do comércio reabriu, brotam mesas nos bares e restaurantes. Respira-se e há vida — como resposta ao necessário trancamento de mais de dois meses. O sonho é chegar ao patamar da Nova Zelândia da primeira-ministra Jacinda Ardern, que, na semana passada, anunciou não ter no país casos ativos do novo coronavírus. Sim, trata-se de nação insular, pequena e rica, mas o exemplo entregue é emocionante e precisa ser celebrado.
No Brasil, nos próximos dias, o cotidiano de metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro começará a mudar, com a reabertura gradual das atividades profissionais — embora, insista-se, a curva de contaminação não tenha cedido. Por isso, mais do que nunca, é fundamental seguir com cuidado e atenção o protocolo de retomada elaborado pelas autoridades de saúde. Sempre de máscara, em horários específicos de funcionamento dos estabelecimentos comerciais, sem aglomerações — assim será o “novo normal”, a expressão definitivamente incorporada nas relações humanas. É cedo, ainda, para conhecermos o planeta a ser reinaugurado — e, sem dúvida, é prematuro estabelecer o saldo final do período de vastas incertezas. Sabe-se que foi e será algo grandioso, indelével, melancolicamente inesquecível — uma passagem de dramas, dores, mas também de curas e sobretudo de vitórias científicas, como a da corrida bilionária e veloz da indústria farmacêutica, ancorada em epidemiologistas, pela busca da vacina contra o coronavírus, como mostra a reportagem que se inicia na página 66. Os repórteres de VEJA ouviram especialistas, conversaram com os líderes de gigantes como a Pfizer e a Johnson&Johnson e mergulharam no envolvimento de equipes e voluntários brasileiros, capitaneados pela Fundação Lemann, na descoberta da ambicionada imunização (o Brasil é o único país da América Latina a participar dos trabalhos do grupo mais avançado no cronograma de pesquisas, o da Universidade de Oxford, na Inglaterra). Trata-se de uma aventura fascinante, apoiada na boa ciência, em sentido oposto ao dos tolos que pretendem esconder ou diminuir a realidade.
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Clique e AssinePublicado em VEJA de 17 de junho de 2020, edição nº 2691