Carta ao Leitor: Cavalos encilhados
Com a possibilidade de lua de mel com o Congresso, que o governo Bolsonaro não desperdice a segunda chance
Na política, assim como na vida cotidiana ou nos negócios, nem sempre é possível ter uma segunda chance. Quando a tão sonhada oportunidade aparece, é crucial agarrá-la com todas as forças, porque o risco de aquele momento mágico nunca mais se repetir é grande. Sobre esse tema, aliás, o ex-governador Leonel Brizola (um gestor fraco, mas excelente frasista) costumava repetir um provérbio gaúcho: “Cavalo encilhado não passa duas vezes”. Em geral, tal máxima vale também para os governos. Caso uma administração não aproveite as condições favoráveis para negociar a aprovação de determinados projetos no Congresso, uma tempestade chega — e lá se vai o cavalo em disparada. Para lembrar um episódio recente, foi o que aconteceu com o ex-presidente Michel Temer em relação à reforma da Previdência. O então ocupante do Palácio do Planalto tinha base política e o objetivo de mudar o sistema de aposentadorias do país. Alvejado pelo escândalo das gravações da JBS, teve de mudar suas prioridades.
Singular em diversos aspectos, a administração de Jair Bolsonaro também contraria o provérbio. Eleito com 57 milhões de votos prometendo implementar uma agenda liberal, o presidente deixou escapar a melhor oportunidade para fazer andar seus planos, no início do governo. Em vez de negociar legitimamente com partidos e lideranças, Bolsonaro achou que poderia impor suas vontades por meio das bancadas da bala, da Bíblia e dos ruralistas, entre outras. Nomeou destrambelhados como interlocutores, irritou-se com a dinâmica do jogo parlamentar e, por diversas vezes, entrou em confronto com o Legislativo, ameaçando, com comentários estapafúrdios, a democracia. Acabou perdido, sem conseguir montar uma base. O ponto fora da curva, positivo, foi a reforma da Previdência, que, na verdade, se deveu muito mais ao empenho do ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia.
Mas eis que uma segunda chance, essa rara circunstância, apareceu com a eleição para as presidências da Câmara e do Senado. Com a vitória dos candidatos do governo em ambas as Casas (Arthur Lira e Rodrigo Pacheco), abre-se uma nova brecha. Há no horizonte a possibilidade de lua de mel com o Congresso, costurada por uma tropa de cerca de 300 deputados e mais de cinquenta senadores. Contudo, cavalos encilhados são ariscos. Por isso é preciso inteligência para saber por onde começar, evitando assuntos que possam trancar a pauta e gerar divergências. Não está na hora, evidentemente, de abrir a agenda de costumes que Bolsonaro tanto deseja. Também não é hora de ressuscitar uma nova CPMF, imposto com enorme rejeição entre os parlamentares e a população.
O ideal seria aprovar temas que já tenham convergência no Parlamento. O novo presidente da Câmara, Arthur Lira, tem falado no pacto federativo. Insiste também na reforma administrativa. É um excepcional começo. Ao contrário de alguns incautos que consideram as mudanças administrativas mero aceno para agradar à elite empresarial da Faria Lima, o movimento é fundamental para todos os brasileiros, especialmente os mais pobres. Só com um ambiente que atraia investimentos, nacionais e estrangeiros, mais empregos serão gerados. As condições favoráveis estão postas — aqui e lá fora. Com a vacinação em massa, uma liquidez brutal de capital ganhará corpo no mundo, e o Brasil, caso cumpra essa pauta, poderá se beneficiar. Que o governo Bolsonaro não desperdice a segunda chance.
Publicado em VEJA de 10 de fevereiro de 2021, edição nº 2724