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A obscenidade de Deus

Reunida pela primeira vez, a ficção completa de Hilda Hilst revela as obsessões teológicas da escritora — que estão na base até de seu erotismo

Por João Cezar de Castro Rocha
Atualizado em 15 jun 2018, 06h00 - Publicado em 15 jun 2018, 06h00

Mais ou menos na metade de A Obscena Senhora D — um dos onze títulos coligidos no recém-lançado da prosa, a primeira reunião da ficção completa de Hilda Hilst (1930-2004) — a narradora esclarece a questão que confere densidade à obra da escritora paulista: “a vida era resplendor e prata, demasiada rutilância se tu me tocavas, e sinistra e soluçosa e nada quando tu não estavas. lamá sabactani”. A citação completa seria “Eloí, Eloí, lamá sabactâni”, ou seja, “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”. Ela pode ser encontrada na abertura do Salmo 22 e também nos Evangelhos de Mateus e de Marcos, como as últimas palavras do Cristo crucificado. A omissão do vocativo “Eloí, Eloí” sublinha o desafio que estrutura a obra sem centro da autora: a ausência de Deus nas coisas do mundo.

Hilda esconjurou esse dilema por meio de obsessões que equivalem a uma assinatura. A frase de abertura de Com os Meus Olhos de Cão funciona como um leitmotiv wagneriano, reafirmando a angústia da autora: “Deus? Uma superfície de gelo ancorado no riso. Isso era Deus. Ainda assim tentava agarrar-se àquele nada”. Aliás, “nada” é palavra-chave na obra de Hilda Hilst. Em Fluxo-Floema, por exemplo, a autora radicaliza o “nonada” que abre Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa: “nada sei, NADANADA do homem”. No final do relato, o termo retorna agravado: “Haydum, um gozo não me tiras: NADANADA de mim quando me tomares, nem os ossos”. Ou o desfecho de Kadosh: “Tempo de amor, o meu agora, Cão de Pedra. Que eu viva carne e grandeza. E principalmente isso: que eu Te esqueça. Mais Nada”. Substantivação de coisa nenhuma que se encontra no autorretrato a palo seco da Senhora D: “eu Nada, eu Nome de Ninguém”. Esse inesperado Ulisses, mesmo sem dispor de Ítaca alguma, aprecia viver à deriva: “eu à procura da luz numa cegueira silenciosa, sessenta anos à procura do sentido das coisas”.

‘da prosa’, de Hilda Hilst (Companhia das Letras; 888 páginas em dois volumes; 89,90 reais ou 39,90 em versão digital) (//Divulgação)

Em Rútilo Nada, a abertura da novela tematiza o impasse: “Os sentimentos vastos não têm nome. (…) Inventar palavras, quebrá-las, recompô-las, ajustar-me digno de tanta ferida, teria sido preciso”. Esse sentimento do mundo refere-se, literalmente, à obscenidade de Deus. Recorde-se a etimologia de obsceno: estar fora de cena. Se, no Antigo Testamento, segundo os eruditos, Deus aparece umas boas 100 vezes, inquirindo, comandando, punindo e vigiando, no Novo Testamento seu silêncio não abre exceção nem mesmo para a pergunta final de Cristo. O escritor japonês Shusaku Endo escreveu sua obra-prima discutindo o dilema em O Silêncio: como aceitar um Deus silencioso? Trata-se de complexo problema teológico: ausente, Deus não apenas dá corpo a um NADANADA ameaçador como também parece autorizar a presença do Mal — o mistério da iniquidade, sintomaticamente mencionado em A Obscena Senhora D: “de onde vem o Mal, senhor? misterium iniquitatis, Senhora D, há milênios lutamos com a resposta, coexistem bons e maus, o corpo do Mal é separado do divino”.

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A questão não se resolve, apenas se agudiza na obra de Hilda Hilst. Diante do Nada, como lidar com A Negação da Morte — obra mais conhecida do antropólogo americano Ernest Becker, a quem a autora dedicou dois livros? Aqui, seu interesse por estudar, digamos, as vozes do além se inscreve na busca pela transcendência perdida. Numa chave similar, Mario Levrero, fascinante autor uruguaio, publicou em 1978 um inquietante Manual de Parapsicologia. Em ambos os casos, o fracasso “científico” das pesquisas paranormais abriu caminho para a intensificação da experiência literária. De igual modo, Hilst e Levrero foram cúmplices na “anarquia dos gêneros”, na expressão de Alcir Pécora. Ora, o Absoluto, ainda que seja um Nada Absoluto, não supõe o respeito aos códigos deste ou daquele gênero literário, porém o emprego livre de todos os recursos disponíveis.

Em alguma medida, a centralidade do erotismo na obra de Hilda Hilst se relaciona com essa temática. Em francês, o orgasmo é conhecido como “a pequena morte” (la petite mort). Multidões de Lázaros ressuscitam diuturnamente em todas as latitudes, experimentando o oco que se pincela na narrativa “Lázaro”, de Fluxo-Floema: “Um silêncio feito do escuro das vísceras. Um silêncio de dentro do olho”. Em O Caderno Rosa de Lori Lamby, por meio de uma narradora-menina de 8 anos, explorada pelos pais, Hilda formula uma crítica corrosiva à sociedade cuja disfunção produz uma erotização precoce ao mesmo tempo em que promove o combate à pedofilia. A contradição dos termos parece não incomodar; afinal, o consumo reina soberano. Nas palavras da menina, o dinheiro que ganhava tinha destinação certa: “Aquelas bolsinhas, blusinhas, aqueles tênis e a boneca da Xoxa”. O tropeço na grafia do nome próprio tem alvo: é mesmo muito sem graça (ou chocho) o falso moralismo de boa parte de nossos comportamentos. A obscenidade de Deus, as vozes do além e o erotismo são formas por vezes agônicas, por vezes lúdicas, de reafirmar a estrutura sem centro da obra de Hilda Hilst: “Derrelição, ouviu? Desamparo, Abandono”.

Publicado em VEJA de 20 de junho de 2018, edição nº 2587

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