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A lição de Pirro para 2018

O ceticismo é uma forma de sanidade na era da desinformação

Por José Francisco Botelho
Atualizado em 31 jan 2018, 15h17 - Publicado em 29 dez 2017, 06h00

Durante anos eu me considerei um seguidor temporão de Pirro de Élida — pintor frustrado, viajante profuso e filósofo excêntrico do século IV a.C. De acordo com Vidas, de Diógenes Laércio, Pirro integrou o séquito de pensadores que acompanharam Alexandre, o Grande, em sua jornada pelo Oriente; de volta à Grécia, fundou a escola filosófica conhecida como ceticismo clássico. Seu objetivo era curar a patologia do dogmatismo. De uma ponta à outra da Terra — observou Pirro —, a humanidade aferra-se a opiniões que têm aparência de verdade, mas, no fundo, não podem ser provadas nem refutadas. Nesse caso, crer ou descrer é questão de gosto. Colocado entre dogmas que se opõem, o filósofo cético deve “suspender o juízo”: aceitar que o universo é incompreensível e resignar-se à dúvida eterna. “Não sei se o mel é realmente doce”, escreveu, deliciosamente, Tímon, discípulo de Pirro. “Sei apenas que me parece doce.” Por algum tempo, também andei por aí suspendendo o juízo a respeito de tudo (coisa muito útil na época em que trabalhava como repórter). Mas, hélas, celebrar a dúvida eterna às vezes cansa. Enveredei por outras sendas, e a lembrança de meus tempos de cético pirrônico me fazia sorrir — ceticamente… Isso até alguns meses atrás. Por causa do clima de morbidez mental que tomou conta do país em tempos recentes — e promete chegar a píncaros nunca antes galgados neste ano que começa —, voltei a pensar no ceticismo clássico como uma filosofia séria e atualíssima. E cheguei à conclusão de que, em 2018, o Brasil precisa do velho Pirro.

A revolução digital, quando despontou na virada do milênio, parecia prenunciar a morte dos dogmatismos. O acesso às informações jamais fora tão universal; era lógico esperar que a humanidade se tornasse menos, e não mais, propensa ao autoengano. Mas não contávamos com as astúcias do fanatismo, essa força da natureza, que acha jeitos de renascer mesmo quando parece exorcizada. Facilidade de informação também é, tragicamente, facilidade de desinformação: jamais foi tão simples conferir um verniz plausível a ideias que contradizem a experiência.

Não voltei a ser um seguidor de Pirro — já não tenho fervor suficiente para duvidar de tudo. Mas uma dose de ceticismo clássico talvez sirva de antídoto contra a orgia de desinformação voluntária que ameaça nos engolir. O ceticismo foi acusado de ser o cemitério do pensamento: se nada podemos saber com certeza, tudo o que resta é o silêncio. A acusação, contudo, não é justa, pois o solvente pirrônico deixa intacta ao menos uma coisa: o espírito de investigação incessante. Um bom cético não nega que exista uma Verdade; apenas não aquiesce ante verdades úteis e provisórias: continua investigando os dados da realidade sem tentar desbastá-los a golpes de retórica. “Suspender o juízo” pode não ser uma panaceia universal, mas cultivar a dúvida, em meio à proliferação de dogmas enfurecidos, é sempre uma forma oblíqua de elegância e sanidade.

Neste ano-novo, que Pirro esteja com vocês.

Publicado em VEJA de 3 de janeiro de 2018, edição nº 2563

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