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A incômoda vocação para o gargalo

Com investimento baixo e de má qualidade numa área-chave, o Brasil trava sua economia e compromete cada vez mais seu potencial de crescimento

Por Bianca Alvarenga Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 3 ago 2018, 07h00 - Publicado em 3 ago 2018, 07h00

Bastaram alguns dias sem os caminhoneiros rodando pelas estradas brasileiras para que faltassem produtos essenciais de norte a sul do país. No fim da paralisação, que se estendeu por dez dias em maio passado, não havia mais combustível nos postos e os alimentos frescos desapareceram das feiras e dos mercados. O governo, pego de surpresa, não conseguiu apresentar nenhuma via alternativa para garantir o abastecimento da população. Atônito, desencontrado, teve como única reação publicar uma tabela de preço mínimo para o frete, criticada pelo setor e contestada judicialmente. Ressurgiu, então, o debate sobre a estrutura de logística nacional — e a constatação, óbvia, de que somos muito, exageradamente dependentes do transporte sobre rodas e dos combustíveis fósseis.

Os números não deixam dúvida: mais de 60% da carga movimentada pelo país é levada em caminhões, e apenas 21% passa pelas ferrovias. Nos Estados Unidos, os trens são responsáveis por mais de um terço de todo o transporte de cargas. Do pouco que segue pelos trilhos no Brasil, 80% corresponde ao minério exportado pela Vale, a maior mineradora do país. O restante são grãos e combustíveis. Ou seja, a diversificação é baixíssima.

O governo brasileiro, há décadas, optou por privilegiar a indústria automobilística. “Governar é construir estradas”, dizia o presidente Washington Luís ainda na década de 20 — e no pós-guerra isso foi ainda mais verdadeiro por aqui. Nos últimos anos o mantra se repetiu. Enquanto o mundo desenvolvido procura meios alternativos mais limpos e eficazes para se movimentar, o país mantém a prioridade de injetar combustível no trânsito rodoviário. Entre as políticas adotadas estão subsídios para financiamento de caminhões e o represamento de reajustes no preço do diesel. Ao mesmo tempo, as promessas de impulsionar os meios de transporte alternativos nunca decolam. “Falta um planejamento eficiente. As políticas de investimento em infraestrutura mostram-se apenas reativas aos problemas que surgem”, analisa Maria Fernanda Hijjar, sócia do Instituto de Logística e Supply Chain (Ilos). “Não basta, por exemplo, recapear trechos de rodovias e continuar transportando grande parte das cargas pelas estradas. É preciso pensar o papel de cada modalidade de transporte para saber qual é a melhor estratégia”, acredita ela.

FORA DOS TRILHOS – Apenas 21% das cargas passam por ferrovias (./Divulgação)

O Brasil tem 30 000 quilômetros de ferrovias; já a extensão das estradas é quase sessenta vezes maior do que isso. Dados recentes revelam que a velocidade média das locomotivas está no menor patamar da série histórica. Entre outros fatores, a velocidade é prejudicada pela falta de segurança (como pessoas caminhando às margens dos trilhos). Os ma­quinistas precisam frear as composições por precaução. Velocidade mais baixa significa menos eficiência no transporte e, portanto, custos mais elevados. (Os trens americanos circulam a uma velocidade até quatro vezes maior que a dos brasileiros.) Pouco rentável, o setor, mesmo privatizado, não consegue fazer os investimentos necessários para levar as linhas às novas rotas de escoamento da produção agrícola. Tome-se como comparação, outra vez, o que ocorre nos Estados Unidos. Lá, a soja colhida no Meio-Oeste é conduzida por hidrovias até os portos do Golfo do México ou transportada por ferrovias até a costa oeste do país. Já no Brasil a carga faz a maior parte do trajeto por meio de rodovias, com trechos sem pavimentação nem acostamento. Resultado: o custo do transporte da soja de Mato Grosso até a China chega a ser até 30% maior do que o de Iowa para esse mesmo país asiático, embora o custo brasileiro de produção seja 10% menor que o americano. Ou seja: ganhamos na terra, mas perdemos na estrada. A concentração de rodovias no Brasil até poderia valer a pena se elas tivessem um nível europeu. Não é o caso.

As concessões de projetos a empreendedores privados melhoraram a qualidade em alguns trechos das estradas nacionais. Outras, entretanto, não cumpriram as promessas. Projetos leiloados no governo Dilma Rousseff apresentaram uma série de problemas e, em alguns casos, as empresas decidiram cancelar os contratos. Houve previsão superestimada do fluxo de veículos. Devido à crise ou à irrealidade das premissas, o tráfego esperado não se confirmou, e as contas das companhias desabaram.

BONS VENTOS – Um parque de energia eólica: com bom planejamento, o Brasil já virou o oitavo maior produtor do planeta (Itamar Aguiar/Palácio Piratini/Divulgação)

Nos aeroportos também se observou uma melhora graças às privatizações. Novos terminais foram inaugurados, e a crise aérea acabou superada. Em alguns deles, porém, repetiram-se as falhas cometidas com as concessões rodoviárias. O caso emblemático é o Aeroporto de Viracopos, em Campinas (SP). Os administradores privados entraram com pedido de devolução do empreendimento, alegando que a demanda estava muito abaixo da esperada, o que tornava impossível pagar os compromissos firmados. No ano passado, o aeroporto recebeu 9,3 milhões de passageiros — a previsão era de quase 18 milhões. A queda no fluxo de usuários evidenciou que houve uma grave falha nas estimativas. “O que vimos, nos anos recentes, foi a ‘captura’ das agências reguladoras por grupos de interesse. Isso explica a razão para tantos erros de planejamento e fiscalização”, afirma o especialista em infraestrutura Claudio Frischtak, presidente da consultoria Inter.B. “O fato de as agências não serem regidas por critérios puramente técnicos gera uma incerteza enorme, que se traduz em risco e custo maior dos projetos”, avalia ele.

No setor elétrico, o Brasil ainda vive na corda-bamba. Parece não ter aprendido as lições do apagão de 2001. Chegou a ser feito, de maneira emergencial, um grande investimento em usinas térmicas. Elas respondem hoje por 20% da eletricidade consumida em território nacional. Foram elas que impediram novos racionamentos em 2013 e 2014. No entanto, as térmicas são uma alternativa cara, que acaba tornando mais altas as tarifas pagas pelas famílias e pela indústria. Dilma Rousseff tentou baixar esse valor na base da canetada. Deu errado. A medida derrubou a rentabilidade das empresas e levou à formação de um passivo bilionário. A Eletrobras, a segunda maior estatal brasileira, atrás apenas da Petrobras, foi obrigada a assumir distribuidoras quebradas, antes administradas por governos estaduais, e a entrar como sócia em projetos que pouco atraíam o setor privado. Resultado: anos de prejuízo. Esperava-se que o processo de privatização da estatal, anunciado em 2017, fosse pôr fim a esses problemas, contudo os interesses das bancadas regionais impedem que o projeto ande no Congresso.

No lado positivo, o investimento em geração eóli­ca ajudou o setor. Os primeiros leilões de parques deram-se em meados de 2009, em plena crise mundial. Muitas empresas estrangeiras, sobretudo as europeias, tinham máquinas ociosas e vieram aproveitar a demanda nacional. O setor cresceu rapidamente, e hoje o Brasil já é o oitavo maior gerador eólico do planeta, à frente de nações como Itália e Canadá. No Nordeste, cuja falta de chuvas atrapalha o abastecimento dos reservatórios das hidrelétricas, as usinas movidas a vento já geram mais de 80% da energia da região. Eis um exemplo de que, com um pouco de planejamento, o setor de infraestrutura pode tirar proveito de ventos mais favoráveis no futuro. Se mantiver o medíocre nível atual de investimento na expansão e melhoria dessa área fundamental, o país continuará a ser sufocado por novos gargalos — nas estradas, nos aeroportos, nos portos, na eletricidade — quando a economia voltar a crescer de maneira mais acelerada.

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Publicado em VEJA de 8 de agosto de 2018, edição nº 2594

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