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À espera de soluções – que, claro, existem

O esgotamento do sistema viário é apenas uma das inúmeras dificuldades enfrentadas pelos grandes centros urbanos. Mas há saídas

Por Daniela Hirsch
Atualizado em 31 ago 2018, 07h00 - Publicado em 31 ago 2018, 07h00

Quando o assunto é o deslocamento de pessoas, algumas cidades de outros países sul-americanos têm andado melhor do que a maioria das brasileiras. Os exemplos se multiplicam. Algo nesse sentido já havia sido assinalado em 2004: nesse ano, a colombiana Medellín inovou ao utilizar teleféricos em locais desassistidos de linhas regulares de ônibus. Nos últimos tempos, no entanto, os avanços em capitais da vizinhança no quesito mobilidade tornaram-se ainda mais expressivos. Em 2016, Santiago do Chile recebeu o Prêmio Internacional de Transporte Sustentável, concedido pelo Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP) — instituição sem fins lucrativos fundada nos Estados Unidos em 1985 —, pela adoção de medidas que melhoram a vida de pedestres e ciclistas. E recentemente até a caótica Lima, no Peru, vem atuando de modo a facilitar a vida de quem caminha em sua região central, com o advento de calçadões, sinalização especial em faixas de travessia sem semáforo e padronização de passeios; para não falar da adoção do Bus Rapid Transit (BRT) — este, pelo menos, com o DNA de Curitiba, onde foi criado pelo então prefeito Jaime Lerner, na década de 70. Enquanto isso, no Brasil, um formidável número de conglomerados urbanos padece com o esgotamento de sistemas viários de toda espécie e a carência de transporte coletivo.

De acordo com o IBGE, 85% da população brasileira vive em cidades. As de médio e grande porte — acima de 100 000 habitantes —, que representam 310 dos 5 570 municípios do país, seguiram o conceito de urbanização centro-periferia. “Nesse modelo, a maior provisão de serviços, infraestrutura e empregos está na área central. Ao redor dela, vivem as classes média e alta. Só nos bairros periféricos vemos famílias de baixa renda, e lá faltam equipamentos públicos e bons acessos”, analisa o arquiteto urbanista Kazuo Nakano, da Universidade Federal de São Paulo. “Naturalmente, num cenário assim, os deslocamentos pendulares, de longas distâncias — em que uma enormidade de pessoas sai de casa logo cedo para ir trabalhar em outras regiões, só regressando no fim do dia —, são os que prevalecem”, observa ele.

A concentração de viagens pendulares, por sua vez, está na raiz dos congestionamentos das vias radiais e da superlotação de ônibus, metrôs e trens — a imagem mais comum que vem à mente quando se pensa no cotidiano da população urbana. Até cidades de médio porte repetem esse padrão. Os números relativos a veículos leves motorizados ilustram bem o problema. Conforme levantamentos do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) e de secretarias de Estado da Fazenda, a frota brasileira em 2017 era de 41,2 milhões de automóveis circulantes e 15,1 milhões de motocicletas. Duas décadas antes, havia 17,8 milhões e 3 milhões, respectivamente. Enquanto a enxurrada de carros disputa espaço nas ruas, os usuários de coletivos se espremem, ano após ano. Tome-se o exemplo dos veículos sobre trilhos. Neles, a recomendação é não ultrapassar o limite de seis passageiros por metro quadrado nos horários de pico; nas linhas da capital paulista, chega-se a oito. Quando se trata de coletivos sobre pneus, o sofrimento é duplo: na espera prolongada e dentro dos ônibus lotados.

NA BEIRA DO CAOS - Estação da Luz, no centro da capital paulista: passageiros amontoados nos vagões (Cris Faga/Fox Press Photo/Agência O Globo)

“Por mais que existam modelos vencedores mun­do afora, não podemos simplesmente importá-­los. Devemos adaptá-los à nossa realidade”, acredita Thomaz Assumpção, diretor da Urban Systems, empresa que já realizou mais de 25 000 entrevistas sobre acessibilidade com brasileiros de todas as classes sociais, para que as administrações públicas tenham elementos que ajudem a pensar o desenvolvimento estratégico das cidades. Assim, o que se pode dizer, considerando a opinião abalizada dos estudiosos e técnicos do setor, é que as soluções para os dramas da mobilidade passam sempre por um tripé, cuja primeira perna é justamente a descentralização. “De que adianta ofertar moradia em bairros distantes, sem padaria, sem quadras de esporte, sem chance de emprego e sem tudo o que é essencial ao redor? Rapidamente a habitação se deteriora e o abandono do espaço público se reflete em violência e degradação”, comenta Assumpção. O engenheiro gaúcho Luis Antonio Lindau, que dirige no Brasil o World Resources Institute (WRI) para Cidades Sustentáveis — empresa mundial que conecta governos, iniciativa privada e sociedade civil visando ao desenvolvimento de projetos e pesquisas —, pontua: “Mover um Uruguai diariamente da Zona Leste para o centro de São Paulo não dá”.

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Uma pesquisa realizada em 2015 pelo Ibope na capital paulista revelou que 48% dos habitantes gastam mais de duas horas por dia em deslocamentos. A mesma pesquisa identificou que 83% dos entrevistados que usam o carro quase diariamente prefeririam deixá-lo na garagem se houvesse alternativa (em 2014, eram 65%). O resultado escancara a carência de acesso aos bairros periféricos, evidenciando o segundo pilar do tripé de providências destinadas a superar a questão da mobilidade urbana: a melhoria do sistema de transporte coletivo. Corredores de média capacidade, como o dos BRTs e as faixas exclusivas de ônibus, exigem menos investimentos que trens e metrôs — e atendem prontamente à demanda reprimida. É claro que tais ações dependem dos gestores públicos, porém deve-se considerar que em quatro ou oito anos de mandato no Poder Executivo municipal não se reverte um quadro tão complexo como o que existe hoje na área de transporte nas cidades brasileiras.

O terceiro pilar de iniciativas pró-mobilidade urbana é talvez o mais polêmico. Refere-se a restrições mais efetivas ao uso de automóveis particulares. “Por que o rodízio é adotado na maior parte das capitais da América Latina e o pedágio urbano, que traria melhores resultados, não?”, pergunta, em tom de desafio, o economista e pesquisador Rodrigo Moita, coordenador do Programa de Estudos Avançados do Insper. Sua resposta é avassaladora: “Como o rodízio afeta um grupo menor de pessoas e tem efeito quase nulo entre os mais privilegiados, politicamente é mais fácil implementá-lo”. Segundo ele, dessa forma o prejuízo do trânsito incide mais sobre os pobres. Pau Avellaneda, consultor catalão e atual presidente da Federação Iberoamericana de Urbanistas, concorda com Moita: “O custo decorrente das tarifas, do tempo perdido e do desgaste nos deslocamentos pode chegar a 40% ou até 50% da renda de famílias que precisam realizar longas viagens e perdem entre três e cinco horas por dia no trânsito. Assim fica difícil quebrar o círculo vicioso da pobreza. Elas poderiam estar gas­tando esses recursos com educação”.

Para que o tripé de ações em favor da mobilidade se concretize, todos os planos diretores das cidades precisariam sair do papel. Conforme um levantamento do IBGE realizado em 2015, somente metade dos municípios brasileiros possui essa ferramenta. “Ela é imprescindível para produzir uma cidade mais equilibrada. O Plano Diretor de São Paulo, premiado pela ONU no início de 2017, inverteu uma lógica antiga, priorizando a ocupação urbana a partir do transporte coletivo, e não mais com base na ampliação e melhoria de sistema viário para carros”, sublinha Kazuo Nakano.

NOS TRILHOS - VLT do Rio: linha até o aeroporto e integração total (Yasuyoshi Chiba/AFP)

Enquanto esse trio de providências fundamentais para uma melhor mobilidade nas cidades não se estabelece, algumas iniciativas chamam atenção. É o caso do Programa Salvador 360, por exemplo, que prevê investimentos a médio e longo prazo no crescimento sustentável da capital baiana. Ou do projeto VAMO, de Fortaleza, de automóveis elétricos compartilhados. A cidade, aliás, tem também investido na mobilidade ativa, com estímulo ao uso de bicicleta, a partir da construção de ciclovias, e apoio à circulação de pedestres, com melhorias nas calçadas, sinalizações e segurança. Belo Horizonte e Rio de Janeiro aproveitaram os recursos liberados em razão da Copa de 2014 e da Olimpíada de 2016 para aprimorar seus sistemas. Na capital mineira, corredores de ônibus foram adaptados para funcionar como BRT. Na cidade que abrigou os Jogos Olímpicos, a nova linha de VLT conecta o Aeroporto Santos Dumont ao centro e opera integrada ao metrô, ao trem e a terminais de ônibus.

No plano individual, algumas transformações trazidas pelo compartilhamento de informações e meios de transporte através do uso de aplicativos e de redes colaborativas vêm alterando notavelmente o comportamento das populações urbanas. “Há um movimento internacional de compartilhamento. Não precisamos ter carro, e sim usar o que a cidade oferece. E temos de ensinar isso às novas gerações”, diz a arquiteta urbanista espanhola Irene Quintáns, que vive em São Paulo e é fundadora da Rede Ocara — plataforma on-line latino-americana de projetos urbanos e culturais que envolvem crianças. É um olhar voltado, sobretudo, para o futuro, em que a experiência solidária e a simplicidade das atitudes básicas, como andar a pé, devem cruzar seu caminho com as novas tecnologias, como se verá nas páginas seguintes.

Publicado em VEJA de 5 de setembro de 2018, edição nº 2598

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