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A doença italiana

Cientista político afirma que seu país, ao privilegiar o protecionismo e o compadrio, inibe a inovação. O resultado é o baixo crescimento e a corrupção

Apresentado por Atualizado em 27 abr 2018, 06h00 - Publicado em 27 abr 2018, 06h00

Era um país cuja economia crescia rapidamente, impulsionada, em boa medida, pelo dinheiro público. Um belo dia, a crise bateu à sua porta. Para piorar, uma investigação sem precedentes trouxe à luz um sistema político e empresarial dominado pela corrupção e pelos interesses recíprocos. De te fabula narratur (a fábula diz respeito a você), poderia dizer o poeta romano Horácio (65 a.C.-8 a.C.) diante dos paralelos entre a situação da Itália dos anos 1990, atordoada pela Operação Mãos Limpas, e a do Brasil atual, engolfado pela Lava-Jato. As semelhanças são evidentes demais para ser ignoradas. Os italianos vivem crises sucessivas. A economia permanece em virtual estagnação há duas décadas. A renda per capita italiana acaba de ser superada pela espanhola; há vinte anos, os italianos eram 30% mais ricos. Para o cientista político Gianfranco Pasquino, 76 anos, ex-aluno do filósofo Norberto Bobbio (1909-2004), a Itália, tal como o Brasil, ressente-se de uma incapacidade para se reformar, num sistema de compadrio que privilegia os amigos (ou financiadores) em detrimento da meritocracia. Pasquino é professor emérito da Universidade de Bolonha e leciona na unidade italiana da universidade americana Johns Hopkins. A seguir, sua entrevista a VEJA, concedida por telefone.

A economia italiana, que já foi uma das mais dinâmicas da Europa, não cresce de maneira consistente há duas décadas. A produtividade permanece estagnada, ao contrário do que ocorre com outras grandes economias da região. Por quê? A economia italiana, na realidade, cresce um pouco. Consegue reagir quando há estímulos positivos. Mas é verdade que o avanço é inferior ao que ocorre em outros países europeus. Isso se deve, essencialmente, a três fatores. Em primeiro lugar, existem diversas atividades e empresas protegidas pelo Estado. O governo não incentiva a concorrência. Frequentemente, em vez de aceitar que alguns negócios morram para dar lugar a outros, novos, o Estado busca salvar os ineficientes. Isso tem um custo em termos de produtividade da economia. Em segundo lugar, como reflexo, em parte, do protecionismo, as empresas italianas investem pouco em inovação. Os equipamentos e as máquinas, quase sempre, são antiquados e impedem os trabalhadores de ser mais produtivos. Raramente a tecnologia usada está à altura das novas tecnologias disponíveis. O terceiro ponto diz respeito a um aspecto do caráter nacional. Os italianos tendem a ser solidários uns com os outros.

“Há diversos setores protegidos na Itália. O governo, em vez de aceitar que negócios morram para dar lugar a outros, busca salvar os ineficientes. Isso tem um custo”

E por que isso seria um problema? É um problema na medida em que os italianos são pouco competitivos, ou melhor, pouco afeitos à competição, à concorrência. Quase sempre, a opção preferida na política ou na economia é privilegiar os amigos, os conhecidos, em vez de premiar o mérito. Por esses fatores, o país é hoje pouco produtivo, e a economia avança timidamente.

Mas a Itália, com essas mesmas características, era mais dinâmica no passado, até os anos 1990. O que mudou de lá para cá? A fase de crescimento verdadeiramente acelerado se deu do início dos anos 1950 até o fim da década de 60. Ocorreu, naquele período, um grande esforço para criar uma indústria moderna e eficiente. Havia também perspectivas de renovação política. Mas, na sequência, em vez de incentivarem a abertura e a concorrência, os partidos buscaram fazer política de acordo com os interesses de seus financiadores.

De onde vem a dificuldade italiana de fazer as reformas necessárias para atrair investimentos e aumentar a capacidade de crescimento? Um primeiro obstáculo vem da burocracia. A lentidão dos processos e o excesso de regulamentação jurídica inibem os investimentos produtivos. São inúmeras licenças, permissões, autorizações. Trata-se de um custo imposto aos empreendedores eventualmente dispostos a criar empresas. Os sindicatos contribuem para o atraso ao proteger os burocratas e, dessa maneira, impedir a realização de reformas profundas. No passado, o governo era um grande investidor na infraestrutura, mas, nos últimos anos, também não tem cumprido seu papel nessa área. Foram feitas algumas obras importantes, como a rede de trens de alta velocidade, porém, no geral, os investimentos ficam aquém das necessidades. As grandes economias europeias fazem muito mais. Em muitas regiões italianas, as estradas são péssimas e as ferrovias funcionam mal. Esses são alguns dos fatores que afastam os investidores estrangeiros da Itália. Não devemos esquecer também o impacto do crime organizado.

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A máfia ainda exerce uma influência negativa, apesar de toda a repressão que sofreu nos últimos anos? Certamente. A Sicília, por exemplo, dispõe de grandes possibilidades, mas a forte atuação mafiosa — no caso, da Cosa Nostra — impossibilita a região de receber investimentos expressivos, sejam eles de empreendedores estrangeiros ou italianos. O mesmo vale para a Campania, área de influência da Camorra. Um investidor não coloca dinheiro onde se sente inseguro.

Se a criminalidade e a corrupção continuam expressivas na sociedade italiana, qual terá sido o legado da Operação Mãos Limpas? As investigações expuseram uma rede de corrupção mais profunda do que se imaginava, na qual estavam envolvidos grandes empreiteiros. A classe política que se encontrava no poder foi quase toda eliminada. Muitos políticos e empresários acabaram processados e presos. De certo ponto de vista, a Operação Mãos Limpas foi um sucesso. Com o tempo a política se reorganizou, mas, infelizmente, ainda há muita corrupção no país. Ela é, sem dúvida, uma fonte de atraso. Quando um corrupto vence a eleição, suas decisões sempre beneficiam os seus mantenedores.

A culpa é da Mãos Limpas? Não é culpa direta da Mãos Limpas, mas do fato de os partidos não terem excluído os corruptos do Parlamento. Dou um exemplo dramático. Silvio Berlusconi foi condenado, em última instância, por fraude fiscal. Ainda assim, continua no comando de um dos maiores partidos do país, o Força Itália. A legenda, portanto, tem como líder um político que, como empresário, foi condenado por ter recorrido à corrupção para pagar menos impostos.

A Operação Mãos Limpas parece a versão italiana da Operação Lava- Jato. O senhor acha que os partidos brasileiros também serão pulverizados? Na Itália, com a derrocada do sistema partidário, restou como alternativa o movimento liderado pelo empresário Silvio Berlusconi, que, com o apoio de legendas não envolvidas em denúncias, ocupou o espaço político. Com a queda do comunismo naquele período, houve também uma possibilidade de renovação da política, com o surgimento de outros partidos. No Brasil não parece ter surgido, até o momento, alternativa que possa ocupar a posição dos partidos tradicionais. O sistema político italiano, entretanto, continua bastante fragilizado. Os partidos são muito fracos, até mesmo o Movimento 5 Estrelas, que saiu vitorioso nas eleições, mas sem votos suficientes para formar um governo.

O que esperar do futuro italiano? Quando vivenciamos uma crise severa, reagimos para superá-la. Mas acredito que ainda não tenhamos chegado a esse ponto. Faremos alguns ajustes, mas não espero nada profundo. Ainda existem muitas empresas inovadoras e competitivas na Itália. Somos a segunda potência industrial da União Europeia, atrás apenas da Alemanha. A indústria automobilística, por exemplo, tem marcas como Ferrari, Ducati. Mas, sem reduzir a burocracia nem investir em tecnologia e infraestrutura, a Itália continuará crescendo pouco.

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Fala-se muito da falta de estadistas, de líderes capazes de equilibrar os interesses de partidos, da economia e dos cidadãos. É um fenômeno contemporâneo? Creio que não existem líderes como no passado porque hoje não há grandes desafios. Alguns poderiam citar a globalização como exemplo, mas não a vejo como um desafio endereçado ao Estado. A falta de líderes reflete ainda o enfraquecimento dos partidos. A competição entre os candidatos muitas vezes gira em torno da popularidade televisiva, e não da disputa interna dentro do partido. O francês Emmanuel Macron, para alguns, poderá ser um estadista. Mas ainda não o é.

“É fácil ganhar votos com um discurso contra a globalização, mas é uma promessa impossível de ser cumprida, porque ela é inevitável. A globalização deve ser administrada, não combatida”

A onda antipolítica também é um risco? A questão mais importante, na minha avaliação, é a falta de interesse pela política. Há aqueles que acreditam que não devem se envolver na política porque sua realização depende apenas do esforço pessoal. Outros não se envolvem porque não creem que as mudanças verdadeiras sejam feitas pela política, mas pela economia, ou pelas especulações no mercado financeiro. Mas a inovação não nasce da especulação financeira. Aliás, a esse respeito, a Europa deveria intensificar a colaboração entre os países. Sempre que faz isso, produz resultados extraordinários, como a Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (Cern). Os países deveriam renunciar parte de sua soberania em favor de projetos comuns europeus.

A eleição de Donald Trump e o Brexit representam exemplos do enfraquecimento do sistema político? Certamente, Trump é um produto do enfraquecimento do Partido Republicano. Emergiu como um empreendedor de discurso populista. Com relação ao Brexit, houve um equívoco do então primeiro-ministro inglês David Cameron. Ele convocou um plebiscito que foi decidido por eleitores apavorados pelos efeitos da globalização. É fácil ganhar votos com um discurso contra a globalização, mas qualquer promessa política contra a globalização é impossível de ser cumprida, porque ela é inevitável. A globalização deve ser administrada, não combatida. Ninguém poderá vencê-la, mas é possível adminis­trá-la. Em ambos os casos, houve uma influência decisiva dos descrentes da política, principalmente os mais jovens. Se os mais jovens tivessem votado nos Estados Unidos, Trump talvez não tivesse vencido. Se os mais jovens tivessem votado no Reino Unido, o Brexit teria sido derrotado. As dificuldades atuais se devem, em grande medida, à falha dos mais velhos em transmitir a importância da política aos mais jovens.

Publicado em VEJA de 2 de maio de 2018, edição nº 2580

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