A chama obscurantista
Na nova versão de 'Fahrenheit 451', produzida pela HBO, o mundo distópico no qual livros são condenados à fogueira foi atualizado para tempos de rede social
No ano passado, J.K. Rowling criticou Donald Trump no Twitter, e alguns de seus (ex) fãs, que são também partidários do presidente americano, prometeram fazer fogueiras com os livros da série Harry Potter. O cineasta americano de origem iraniana Ramin Bahrani resolveu realizar o propósito desses incendiários de rede social, incinerando livros de J.K. Rowling. A autora pop esteve em respeitável companhia: Franz Kafka, Jane Austen, Emily Dickinson, Fiódor Dostoiévski, Gabriel García Márquez, entre outros, também foram queimados.
Tais cenas de apavorar os amantes da literatura estão em Fahrenheit 451, adaptação do romance de Ray Bradbury que estreia no canal pago HBO no sábado 19. O livro já ganhara uma versão clássica do cineasta francês François Truffaut, em 1966. O novo telefilme atualiza a história para dias de redes sociais e fake news. Em um futuro sombrio, Guy Montag (Michael B. Jordan, de Pantera Negra) é um agente do governo que queima livros, sob o comando de Beatty (Michael Shannon). Beatty explica as razões de Estado para tamanha destruição cultural: a literatura, argumenta ele, enlouquece a humanidade. Ideias divulgadas em livros motivam divisões e guerras. “Não nascemos iguais. Tornamo-nos iguais a partir do fogo. Assim somos felizes”, diz Beatty.
No cenário ao fundo, o mundo se converteu em uma grande rede social. Um programa de inteligência artificial vigilante e onipresente interage com os personagens: dá conselhos, sugere fotos para postar na internet e reprova atitudes rebeldes. Um telejornal chancelado pelo governo é transmitido por todos os lados, até nas fachadas de prédios. Em uma espécie de reality show misturado com Facebook, o cotidiano dos agentes e de seus alvos é exibido nas mesmas telas, acompanhado pelas reações virtuais dos espectadores. Esse esforço para que o filme dialogue com o presente é por vezes artificioso, e o desenvolvimento dos personagens — sobretudo a rápida conversão de Guy em rebelde — é mal realizado. O visual futurista ostentoso tenta compensar a falta de musculatura do roteiro.
É interessante, aliás, que um canal de TV seja a nova plataforma da história. Quando lançou o livro, em 1953, Ray Bradbury preocupava-se com a repressão do macarthismo e com a chegada dos aparelhos de televisão aos lares americanos. Sua distopia exacerba duas tendências que ele identificava na sociedade de seu tempo: a alienação pelos meios eletrônicos e a censura ao pensamento crítico. Agora, Bahrani faz do mundo virtual o novo pregador do conformismo. No lugar da comissão anticomunista do senador McCarthy entra o atual inimigo comum de Hollywood, Donald Trump, alfinetado em cenas como a queima de Harry Potter anunciada por alguns de seus admiradores.
Uma semana antes de chegar à televisão, pela HBO, o longa foi exibido no Festival de Cannes, em sessão especial para convidados. É uma contradição mal explicada: a Netflix, afinal, foi excluída do evento francês porque não exibe suas produções em salas de cinema. Fahrenheit 451, em tese, estaria excluído dessa exigência porque está fora de competição. Foi aplaudido de pé no Palais des Festivals, sede do evento. Já na sala vizinha, destinada à crítica internacional, e sem a presença de seus realizadores, a reação foi morna.
Publicado em VEJA de 23 de maio de 2018, edição nº 2583