Black Friday: Revista em casa a partir de 8,90/semana
Continua após publicidade

Ed René Kivitz: A fé não imuniza

Os líderes evangélicos precisam assimilar a importância da ciência: já se foi o tempo em que ela rivalizava com a religião

Por Ed René Kivitz*
Atualizado em 4 jun 2024, 15h00 - Publicado em 10 abr 2020, 06h00
  • Seguir materia Seguindo materia
  • Sobram profetas anunciando que o coronavírus é uma praga apocalíptica e a Covid-19, um juízo de Deus contra a maneira irresponsável e predatória como a humanidade vive no universo. Há também quem pregou que um grande jejum comunitário e compartilhado nas redes sociais pudesse ser o remédio contra o problema. Antes de entrar nos pormenores de cada questão, é preciso entender historicamente a longa e complicada relação da religião com a ciência. Associar os fenômenos sociais e naturais a causas espirituais e sobrenaturais é próprio de todo sistema religioso. É importante ressaltar que a religião encara o mundo como um mistério que exige explicação e sabe que não é a ciência que pode revelar o que está oculto por trás do aparente. Essa compreensão da religião, entretanto, abre um fosso de distanciamento que coloca a fé e as crenças de um lado e a razão e a ciência no extremo oposto. Um abismo perigoso e que não precisa ser tão profundo.

    Em sua obra As Formas Elementares da Vida Religiosa, o sociólogo francês Émile Durkheim esclarece que a religião se ocupa da “ordem de coisas que ultrapassa o alcance de nosso entendimento, o sobrenatural, o mundo do mistério, do incompreensível. A religião seria, portanto, uma espécie de especulação sobre tudo o que escapa à ciência e, de maneira mais geral, ao pensamento claro”.

    Explicar a ordem do universo natural a partir dos mistérios da sobrenaturalidade pode fazer alguma diferença em contexto de baixo desenvolvimento científico. Houve um tempo no qual as rupturas da ordem natural — períodos de seca quando se esperava chuva ou chuvas torrenciais fora do padrão, colheita escassa frustrando a expectativa de fartura, ou ter de lidar com pragas e pestes que destruíam os campos e as sociedades — podiam ser explicadas como ação dos deuses, ou mesmo de Deus, descarregando sua ira sobre o mundo. A mentalidade religiosa perdeu lugar à medida que o conhecimento científico foi domesticando a natureza. Para uma boa safra é melhor se fiar na tecnologia agrícola que no humor dos deuses. Contra pestes e pragas, Albert Sabin (que desenvolveu a vacina contra a poliomielite) e Alexander Fleming (descobridor da penicilina) ajudaram mais que rezas e quebrantos.

    A noção de que a religião trata do que escapa à lógica racional e científica e explica aquilo de que a inteligência humana não dá conta sugere outro abismo perigoso — aquele que separa o racional do irracional. O passo seguinte é a condenação da religião como superstição de gente ignorante. Em termos simples, quanto mais ciência, menos religião; quanto mais esclarecimento, menos necessidade de fé; quanto mais iluminado ou ilustrado o mundo, menos supersticioso ele é, em tese.

    Os profetas contemporâneos e os pastores que insistem em negar a voz da ciência em nome da fé prestam, portanto, grande desserviço à sua crença. Comprometidas em resguardar o papel da religião num mundo que o teórico social Max Weber chamou de desencantado, onde Deus é tido como hipótese desnecessária, as lideranças religiosas que pretendem combater o vírus com vigílias, orações e jejuns conseguem apenas reforçar a noção secular de que a experiência religiosa é mesmo para incultos e fanáticos.

    Continua após a publicidade

    “A necropolítica encontra em líderes religiosos de caráter duvidoso, ou mal esclarecidos, sua face mais nefasta”

    Pastores que, apesar de todas as recomendações e orientações das autoridades competentes, insistem em manter seus templos abertos e dar continuidade a seus eventos e cultos expressam não apenas ignorância, como também atuam de maneira irresponsável e cruel, expondo seus fiéis e a própria sociedade à disseminação de um vírus que já se provou letal. A necropolítica encontra em líderes religiosos de caráter duvidoso, ou mal esclarecidos, sua face mais nefasta, pois é promovida em nome de Deus, em franca oposição às palavras de Jesus, que dizia: “Eu vim para que tenham vida”.

    Paralelo parecido pode ser feito quando o assunto é a convocação para um jejum nacional no Brasil, ideia admirada por uns, rechaçada por tantos outros. Aos que desconhecem o hábito, tal convocação encontra contexto na Israel bíblica, quando um rei, que governava em um Estado teocrático e sob a autoridade religiosa dos sacerdotes, usava o período de abstinência de alimentos e de sacrifícios para apresentar a Deus seu arrependimento, livrando o povo, assim, de seu juízo. Falta a muitos religiosos, porém, um olhar atual sobre hábitos específicos do período registrado no Antigo Testamento da Bíblia. O Brasil não é um Estado teocrático, é um Estado democrático de direito. O Brasil não tem rei sob autoridade religiosa, mas um presidente eleito democraticamente, que governa sob a autoridade do pacto social expresso na Constituição. Como já dito, o flagelo que abate o Brasil e o mundo não é juízo de Deus contra a idolatria de seu povo. No Novo Testamento, o hábito do jejum foi ressignificado por Jesus como um ato de devoção íntima e pessoal, praticado no anonimato, e não com publicações nas redes sociais. Como diz o texto bíblico, o Pai (Deus), ao ver a oração íntima, recompensa aos seus — enquanto quem se vangloria de sua religiosidade busca somente o aplauso de homens. Reforço aqui: o caminho para a superação da pandemia passa pela submissão à autoridade da ciência e pelo rigor na observação das orientações e recomendações dos profissionais da saúde.

    Continua após a publicidade

    A cisão entre fé e ciência reflete mais ignorância que piedade. Atender às recomendações das autoridades governamentais, notadamente aquelas orientadas pelos profissionais da saúde, os especialistas e infectologistas, é uma expressão de sensatez e também uma forma de honrar a Deus. Pois, como bem disse Louis Pasteur, “um pouco de ciência nos afasta de Deus. Muito, nos aproxima”.

    A religião não rivaliza com a ciência: assim como a fé não imuniza, também não existe vacina contra o preconceito, o egoísmo e a crueldade. Se é verdade, e assim creio, que o coronavírus deve ser enfrentado com boa medicina, e a superação da Covid-19 será inclusive uma conquista da ciência, também é verdadeiro que os suplementos de empatia, solidariedade, compaixão e misericórdia, necessários e heroicamente demonstrados por todos aqueles que se expõem ao risco para prover cuidado aos enfermos e vulneráveis, são qualidades que se encontram no coração dos que creem (ou intuem) que a vida descansa nos mistérios e virtudes do espírito humano e do Espírito divino. Assim é a fé saudável: não se fabrica em laboratórios nem se compra em farmácias.

    * Ed René Kivitz, teólogo, é mestre em ciências da religião e pastor da Igreja Batista de Água Branca, em São Paulo

    Publicado em VEJA de 15 de abril de 2020, edição nº 2682

    Publicidade

    Publicidade

    Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

    Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

    Semana Black Friday

    A melhor notícia da Black Friday

    BLACK
    FRIDAY

    MELHOR
    OFERTA

    Digital Completo

    Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

    Apenas 5,99/mês*

    ou
    BLACK
    FRIDAY
    Impressa + Digital
    Impressa + Digital

    Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (a partir de R$ 8,90 por revista)

    a partir de 35,60/mês

    ou

    *Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
    *Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

    PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
    Fechar

    Não vá embora sem ler essa matéria!
    Assista um anúncio e leia grátis
    CLIQUE AQUI.