Sanguinetti: “Política exterior ideologizada é um caminho para o fracasso”
'O que importa é que a democracia seja exercida e que o autoritarismo não tenha espaço', diz o ex-presidente do Uruguai
O senhor esteve na posse de Lula ao lado do ex-presidente Pepe Mujica, seu adversário político, e do atual presidente, Lacalle Pou. Como vê os acontecimentos recentes no Brasil? Conversamos muito sobre o momento político e os resultados que o desrespeito aos símbolos poderia trazer. Em tempos materialistas e mais vulgares parece que os símbolos não têm importância. A senhora Cristina Kirchner não entregou a faixa para Mauricio Macri, Donald Trump não entregou para Joe Biden e vimos Bolsonaro repetindo o mesmo gesto com Lula. É uma mensagem clara de desprezo institucional emitida por esses governantes. A democracia se degrada dessa forma. Isso resulta em fatos deploráveis como os ataques que aconteceram em Brasília depois da posse. Aquelas pessoas que invadiram os prédios não tinham nenhum apreço pela democracia.
Há alguma semelhança entre a direita representada por Bolsonaro e o atual governo do Uruguai? Não. Bolsonaro não é um político conservador. Ele jamais vai liderar uma direita conservadora. É um agitador de direita, e isso é outra coisa. O político conservador não é reformista, aspira à obediência das leis e à estabilidade econômica sem alterar o curso da vida social. Se Bolsonaro tivesse inteligência política, formaria um grande partido conservador e de centro-direita, e não ficaria como um agitador, um solitário seguido por fanáticos. O que aconteceu no Brasil é muito semelhante ao que se passou nos Estados Unidos.
O senhor se refere aos episódios do dia 8 de janeiro? É a mesma cena, a mesma significação em contextos distintos. Trump também não é um político conservador, mas outro agitador de direita. Não conseguiu transformar os Estados Unidos em um regime populista porque as instituições nos Estados Unidos foram fortes. Tampouco Bolsonaro conseguiu isso. As instituições brasileiras alcançaram uma consolidação importante. É preciso ficar atento aos retrocessos que essa polarização política tem trazido.
Esse embate não acontece também no Uruguai? Não podemos ser simplistas e falarmos que aqui temos um governo de direita. Trata-se de uma política de coalizão. Um típico governo de centro, com todas as características republicanas. O Uruguai é um Estado social-democrata em sua essência. O presidente pode ser mais liberal, mais socialista, mas o Estado é sempre o mesmo. Nós, por exemplo, como um governo de centro, temos mais proximidade a Lula do que ao governo Daniel Ortega. Os dois são de esquerda, só que um é da esquerda democrática e o outro é esquerda autoritária.
Qual a expectativa em relação ao governo Lula? O Brasil precisa cumprir bem o seu papel de liderança. Se fizer isso, será melhor para o hemisfério. Nos últimos anos, tivemos uma queda na liderança do Brasil, como também tivemos uma queda na liderança dos Estados Unidos. Tanto Trump como Bolsonaro deixaram de ter uma comunicação necessária com as demais nações. Lula pode ser um homem de esquerda, mas o Estado brasileiro não é socialista. É um Estado de economia liberal. Fazer política exterior ideologizada, entre aspas, é um caminho para o fracasso ou isolamento. Me parece que o Brasil de hoje — tomara que Lula tenha essa percepção — está além das convicções, das ideologias, do debate de ser de esquerda ou de direita. O que importa é que a democracia seja exercida, que o autoritarismo não tenha espaço e que essa metade do Brasil que não votou em Lula sinta que ele é o presidente de todos.
Publicado em VEJA de 8 de março de 2023, edição nº 2831