Jair Bolsonaro nunca fez questão de manter relações harmoniosas com representantes do Poder Judiciário. Desde a sua posse na Presidência, ele bateu de frente com ministros de tribunais superiores, ameaçou enquadrar o Supremo Tribunal Federal (STF) e acusou o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de participar de uma conspirata destinada a tirá-lo do poder. Em sua cabeça tão suscetível a teorias da conspiração, integrantes do STF agem para inviabilizar a sua administração, ao suspender uma série de decisões presidenciais, e trabalham para que Lula vença a eleição deste ano. Os magistrados teriam liberado o petista da prisão com esse propósito e, aninhados na cúpula da Justiça Eleitoral, estariam empenhados em fraudar o resultado das urnas com o objetivo inconfessável de derrotá-lo. Não há prova ou indício de que Bolsonaro seja alvo de uma armação. Mesmo assim, o ex-capitão se mantém em estado permanente de ataque. Em seus discursos, ele costuma dizer que, se reeleito, obrigará os magistrados a jogar dentro das quatro linhas da Constituição. O presidente nunca tinha explicado como isso seria feito, mas agora está claro qual é o seu plano — um plano casuístico e essencialmente antidemocrático.
“Eu não fiz, não vi e não esbocei nenhum projeto mudando a composição do Supremo Tribunal Federal.”
Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados
Com a ajuda de aliados no Congresso, Bolsonaro quer tutelar o Supremo, recorrendo a um receituário usado pelo regime militar brasileiro e por ditadores internacionais — da esquerda à direita. O próprio mandatário deixou escapar sua estratégia em entrevista a VEJA, publicada na edição passada, quando foi questionado se pretende aumentar o número de vagas no STF em um eventual futuro governo. Ao responder, ele não só não negou como deixou a porta aberta para a medida. “Já chegou essa proposta para mim e eu falei que só discuto depois das eleições. Eu acho que o Supremo exerce um ativismo judicial que é ruim para o Brasil todo.” A declaração logo se tornou assunto do debate político e foi usada para reforçar o discurso de que Bolsonaro representa uma ameaça à democracia, tese que uniu tucanos e emedebistas ao PT. Diante do desgaste, o presidente adotou uma postura pendular. Numa entrevista, afirmou que toda a celeuma foi inventada pela imprensa: “Eu falei que isso não estava no plano de governo, e botaram na minha conta”. Noutra, mais condizente com a realidade, declarou que podia desistir da ideia se o Supremo baixasse a bola. O plano existe, está no forno e começou a ser semeado há cerca de seis meses.
“Já chegou essa proposta para mim e eu falei que só discuto depois das eleições. Eu acho que o Supremo exerce um ativismo judicial que é ruim para o Brasil todo.”
Presidente Jair Bolsonaro, candidato à reeleição
Na segunda quinzena de maio, em uma reunião a sós com parte da cúpula do Congresso, um ministro de um tribunal superior recebeu o rascunho do que até então era tratado com a mais absoluta reserva pelo presidente e pelos principais caciques da Câmara dos Deputados: a proposta de uma emenda constitucional para ampliar o número de assentos no STF. No primeiro esboço, seriam criadas quatro novas vagas para a mais alta Corte do país. Na versão mais atualizada, cinco novos postos ampliariam o universo de onze magistrados para dezesseis, o mesmo patamar imposto pelo Ato Institucional nº 2, assinado em plena ditadura, quando os militares quiseram controlar o STF. “Eu vi a emenda. A ideia é apresentar um aditivo a um texto já em tramitação, e Bolsonaro conseguir rapidamente maioria no STF”, disse a VEJA, sob condição de anonimato, o ministro que meses atrás teve acesso ao teor da proposta. Na tentativa de cooptar parcelas do Congresso refratárias à ideia, a cúpula da Câmara rascunhou até um seguro antirrejeição na emenda constitucional. Pelo texto, as novas cadeiras no STF seriam indicadas, alternativamente, pelo presidente da República, pela Câmara dos Deputados e pelo Senado. Ou seja: todo mundo poderia sair ganhando — exceto, claro, a independência da própria Corte.
“Toda e qualquer reforma do Judiciário deve ser feita com muita prudência, com muita responsabilidade e envolvendo o Poder Judiciário.”
Rodrigo Pacheco, presidente do Senado
O projeto detalha, inclusive, como seria o funcionamento do Supremo. Em substituição às atuais duas turmas de julgamento, criadas para desafogar o acervo de processos do pleno, seriam constituídos três colegiados extras para julgar ações variadas, incluindo aquelas envolvendo políticos. “Na criação de vagas para tribunais, quem fica contra? Juízes, membros do Ministério Público e advogados não são contrários porque podem ser indicados para alguma vaga. Quem pode ficar contra é o cidadão comum, mas ele não tem voz nem eco nesse processo”, avalia um ministro do STF, informado sobre a proposta. No roteiro original de Bolsonaro, o projeto de ampliação das cadeiras do Supremo deveria ser mantido em sigilo até estar pronto para a votação, em princípio, em fevereiro de 2023, quando a maioria parlamentar governista e o presidente, à frente de seu segundo mandato, teriam capital político para levar adiante a ideia de empastelar o tribunal. Pelo plano desenhado, caberia a Arthur Lira, aliado de Bolsonaro e favorito à reeleição para o comando da Casa, colocar a proposta em votação, exatamente como fez no caso da emenda constitucional que instituía o voto impresso, rechaçada pelos deputados.
“É uma tentativa de destruir as instituições que garantem a democratização deste país.”
Lula, candidato do PT à Presidência
A VEJA, Lira disse desconhecer a proposta, contrariando versão dada por diferentes fontes: “Eu não fiz, não vi e não esbocei nenhum projeto”. No ano passado, Bolsonaro chegou a pedir o impeachment do ministro do STF Alexandre de Moraes, que está à frente de investigações sensíveis para o governo e foi chamado de canalha pelo presidente. O pedido não avançou porque, entre outras coisas, foi repelido por Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, Casa responsável por esse assunto específico. Se reeleito presidente, Bolsonaro pretende lançar um candidato para tentar derrotar Pacheco na disputa pelo comando do Congresso. “Me estranha muito neste momento estar se discutindo um tema desta natureza. As discussões relativas a toda e qualquer reforma do Judiciário devem ser feitas com muita prudência, com muita responsabilidade”, afirmou Pacheco. Os bolsonaristas não se abalam e têm pressa. Líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR) afirmou numa entrevista que era preciso enquadrar o tribunal. Depois, diante do desgaste eleitoral, foi mais contido. “Não é uma ameaça. Está acontecendo uma reação a um exagero das decisões que são tomadas pelo Judiciário e que não são aceitas pela população. Quem está atacando é o Judiciário.”
Dos onze ministros do STF, dois foram indicados por Bolsonaro: Kassio Nunes Marques e André Mendonça. Outros dois serão escolhidos pelo presidente eleito, em razão da aposentadoria obrigatória de Ricardo Lewandowski e Rosa Weber no ano que vem. Se renovar o mandato e conseguir aprovar o projeto que cria mais cinco cadeiras no Supremo, Bolsonaro terá, a depender da versão final do texto, oito ou nove ministros de sua predileção na Corte, mais do que a somatória de todos os demais juízes indicados por outros presidentes. Se isso acontecer de fato, ele replicará uma prática de líderes autocratas de diferentes espectros ideológicos. Na Venezuela, a Assembleia Nacional aumentou de vinte para 32 o número de integrantes da Suprema Corte, por ordem de Hugo Chávez, que queria ampliar a sua influência sobre o Judiciário. Na Hungria, o premiê Viktor Orbán, de quem Bolsonaro se considera aliado, ampliou de onze para quinze os ministros da Corte Constitucional e antecipou a aposentadoria de vários outros juízes. Na Polônia, magistrados foram aposentados antes da idade, e o presidente se deu poderes para nomear diretamente o chefe da Suprema Corte.
Sob a condição de anonimato, um dos principais articuladores da proposta no Brasil alega que, apesar de todo o debate em torno de seu suposto caráter antidemocrático, a iniciativa tem potencial para avançar porque é de interesse também dos parlamentares, independentemente do presidente que for eleito em 30 de outubro. “Quando nós votamos a lei de abuso de autoridade, nós não enquadramos o Judiciário? Nós temos direito de fazer isso. Se eles estivessem comportados, não tinha reação”, diz. A emenda constitucional em gestação chegou há algumas semanas aos ouvidos do STF, que montou uma contraofensiva para impedir que a proposta seja levada à votação no Congresso. Integrantes do tribunal estão fazendo um levantamento de inquéritos e ações penais a que aliados de Bolsonaro respondem na Justiça. Arthur Lira, por exemplo, é acusado de ter recebido propina de uma empresa de transportes, enquanto Barros é réu por corrupção e lavagem de dinheiro. Os ministros também têm em mãos a ação que questiona a legalidade das famosas emendas de relator, usadas pelo presidente para garantir apoio no Legislativo. Ou seja: o Supremo também tem seu arsenal, mas espera não precisar usá-lo. Em tempos de guerra, o ideal é que o poderio de um lado seja suficiente para convencer o outro lado, igualmente forte, a desistir de detonar suas bombas.
Com boa parte de sua campanha baseada na premissa de que representa uma frente ampla em defesa da democracia, Lula usou a possibilidade de ampliação do número de ministros do Supremo para fustigar Bolsonaro. “Nós estamos enfrentando um cidadão que quer aumentar o número de ministros da Suprema Corte para ter o controle sobre ela. Eu nunca indiquei ministros para me ajudar”, disse. Mas tentou. Durante seus dois mandatos, o ex-presidente nomeou oito ministros para o STF. No governo Dilma, Lula procurou convencer os integrantes do tribunal a adiar o julgamento do processo do mensalão para depois das eleições de 2012. Fracassou. Antes de ser preso pela Lava-Jato, ele reclamou de que o Supremo tinha se acovardado diante do juiz Sergio Moro e pediu que seus aliados procurassem a ministra Rosa Weber, a atual presidente da Corte, para tentar convencê-la a votar a favor de um habeas-corpus que retiraria de Curitiba as investigações sobre ele. Não houve, no entanto, nada parecido com o estresse permanente entre Bolsonaro e a cúpula do Judiciário. “A ampliação imediata das cadeiras no STF gera um desequilíbrio de poder muito intenso, mina a capacidade do STF de exercer a sua função e é, portanto, inconstitucional. A Constituição existe para que nos lembremos que nem sempre a vontade da maioria é legítima e nem sempre ela promove o bem comum e o interesse público”, afirma Rubens Glezer, professor de direito da FGV. A pouco mais de duas semanas do segundo turno, Bolsonaro ainda tenta virar sobre Lula. Sua proposta de tutelar o Supremo — inoportuna e inapropriada — pode até animar seus apoiadores mais fanáticos, mas serve mesmo é para reforçar o caráter antidemocrático que os rivais tentam lhe imputar. Neste caso, com toda a razão.
Publicado em VEJA de 19 de outubro de 2022, edição nº 2811