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Palavras escondidas

A falta de debates, a pouca exposição e as raras entrevistas mantiveram fora do alcance dos eleitores o que está — ou esteve — na cabeça dos candidatos

Por Hugo Marques Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Gabriel Castro
Atualizado em 19 out 2018, 07h00 - Publicado em 19 out 2018, 07h00

Desde a redemocratização, sempre houve debates entre os candidatos a presidente que passam para o segundo turno. A eleição deste ano, no entanto, caminha para ser uma exceção à regra. Com vantagem de cerca de 20 pontos porcentuais sobre o petista Fernando Haddad (PT), o deputado Jair Bolsonaro (PSL) não pretende travar um embate de propostas, ideias e acusações em frente às câmeras. Em público, alega que ainda enfrenta restrições em razão do atentado a faca de que foi vítima. Com base em atestados médicos, cancelou sua participação em pelo menos quatro debates televisivos. Já em privado, Bolsonaro diz que um confronto direto com o rival serviria apenas para dar chance a Haddad de reduzir a diferença que os separa. Ou seja: seria um erro estratégico. Desafiado pelo petista, que prometeu debater até mesmo na “enfermaria”, Bolsonaro zombou de Haddad, de sua condição de preposto do presi­diá­rio Lula e da dificuldade de parte dos eleitores em dizer corretamente seu nome. “Senhor Andrade, quem conversa com poste é bêbado”, declarou em rede social, a única trincheira em que Bol­sonaro aceita duelar (veja a Carta ao Leitor).

EM LIVROS – Haddad já relativizou o trabalho escravo e pediu ao PT que defendesse o socialismo “com mais brio” (Ernesto Rodrigues/Estadão Conteúdo)

Considerados fundamentais para o esclarecimento do eleitorado, os debates servem para passar a limpo dúvidas sobre os candidatos. Bolsonaro e Haddad são pródigos em contradições. Afirmam hoje o que negavam no passado, e vice-versa. Recentemente, Bolsonaro prometeu que, se eleito, seu governo pagará o 13º a beneficiários do Bolsa Família. “Falar em tirar o Bolsa Família é um ato de desumanidade. Pelo contrário, vamos fortalecer”, disse, mirando os eleitores do Nordeste, a única região em que foi derrotado por Haddad no primeiro turno. O Bolsonaro parlamentar pensava o inverso. Em 2011, pediu “um fim, uma transição” para o programa. “O Bolsa Família nada mais é do que um projeto para tirar dinheiro de quem produz e dá-lo a quem se acomoda, para que use seu título de eleitor e mantenha quem está no poder”, explicou.

(Leo Caldas/VEJA)

O Bolsa Família nada mais é do que um projeto para tirar dinheiro de quem produz e dá-lo a quem se acomoda, para que use seu título de eleitor e mantenha quem está no poder.

Jair Bolsonaro, no plenário da Câmara, em 2011

Bolsonaro deu uma guinada também na seara econômica, inclusive quanto a privatizações. Seu plano de governo, que tem como regra a venda de estatais, seria frontalmente combatido pelo deputado de outrora. Nas privatizações do governo tucano, chegou a pregar o fuzilamento do então presidente Fernando Henrique Cardoso, que estaria entregando o país de mão beijada aos estrangeiros. “Quem são os homens de ponta dessas estatais privatizadas? São os espanhóis, os franceses, os japoneses, os americanos. Para nós está sobrando apenas o trabalho de peão, o trabalho braçal”, disse Bolsonaro em 1999. Criticado pela insistência com que promete resolver o problema da segurança pública a bala, ele responde que, eleito presidente, será um escravo da Constituição, o que significa não permitir execuções. De novo, a mudança é cristalina. Em 2003, em discurso na Câmara, Bolsonaro elogiou um grupo de extermínio da Bahia: “Enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte, o crime de extermínio, no meu entender, será muito bem-vindo. Se não houver espaço para ele na Bahia, pode ir para o Rio de Janeiro”.

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(Egberto Nogueira/Imafotogaleria/.)

Enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte, o crime de extermínio, no meu entender, será muito bem-vindo.

Jair Bolsonaro, no plenário da Câmara, em 2003

Manifestações pretéritas de Had­dad também semeiam dúvidas. Antes de ser candidato, o petista disse que “golpe” era uma palavra forte pa­ra definir o impeachment de Dilma Rousseff e culpou a então presidente por problemas que enfrentou na prefeitura de São Paulo. Na campanha, Had­dad abraçou o golpe e es­queceu-­se do desastre do governo Dilma. O presidenciável também está a anos-­luz do acadêmico. Formado em direito pela Universidade de São Paulo, na qual fez mestrado em economia e doutorado em filosofia, Had­dad é autor de livros escritos sob influência marxista. Na obra Em Defesa do Socialismo, publicada em 1998, defendeu o Movimento dos Trabalha­dores Rurais sem Terra (MST) como modelo a ser seguido — no caso, a propriedade por meio de cooperativas. “Revolucionariamente, o MST quer crédito, apoio técnico e autonomia para organizar suas cooperativas. Apesar do seu escopo limitadíssimo e ainda não muito nítido, as demandas do MST têm caráter universal, aplicável a todo ramo de atividade econômica, em pequena e em grande escala”, escreveu Haddad. “São iniciativas des­sa natureza, progressivas em todas as dimensões da vida social, que devem sempre chamar a atenção dos socialistas e lhes servir de inspiração para sua conduta política.”

(Renoir Sampaio/AG RBS/PAGOS/.)

Apesar do seu escopo limitadíssimo e ainda não muito nítido, as demandas do MST têm caráter universal, aplicável a todo ramo de atividade econômica, em pequena e em grande escala.

Fernando Haddad, no livro 'Em Defesa do Socialismo'
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Em 2001, Haddad defendeu a tese de que o PT empunhasse “com mais brio a bandeira do socialismo” e pregasse até a extinção do capitalismo. Na épo­ca, a direção do partido já refutava publicamente tais ideias. Em sua produção literária, ele não só negligenciou como avalizou pecados cometidos. Diz Had­dad em O Sistema Soviético, de 1992: “Milhões foram condenados ao trabalho escravo em campos de trabalho forçado. O arbítrio da autoridade judicial cumpria uma óbvia função ideológica, mas também uma importante função econômica. O trabalho escravo é, em geral, improdutivo, mas as condições econômicas nas quais a Rússia se encontrava justificavam sua utilização”. A relativização do trabalho escravo não caberia na campanha do candidato que se apresenta como defensor intransigente dos direitos humanos e da democracia. Tanto Had­dad como Bolsonaro podem ter mudado de opinião com o passar dos anos. Ao fugir dos debates, no entanto, Bolsonaro deixa claro que não quer entrar em polêmica e revela a certeza de que conquistará a eleição jogando parado. “Nós estamos com a mão na faixa”, declarou. Os atestados médicos, por enquanto, afastaram-no apenas dos debates, mas não das transmissões ao vivo em redes sociais e eventos de campanha escolhidos a dedo.

(Jonne Roriz/.)

O trabalho escravo é, em geral, improdutivo, mas as condições econômicas nas quais a Rússia se encontrava justificavam sua utilização.

Fernando Haddad, no livro 'O Sistema Soviético'

Em desvantagem nas pesquisas, Haddad faz o que pode para recuperar terreno e reduzir sua rejeição, que está em trajetória ascendente. Diz agora que o juiz Sergio Moro apenas “errou” ao condenar Lula, mas o saldo da atuação do magistrado é “positivo”. Foi a maior inflexão já feita por uma estrela petista, visto que até então predominava o discurso segundo o qual Moro promovia uma caçada a Lula e ao PT. Haddad também tem prometido um governo “amplo”. Encerrado o primeiro turno, ele abriu negociações para receber o apoio de Ma­rina Silva (Rede), de Ciro Gomes (PDT) e até do PSDB. Deu tudo errado. Ciro declarou apenas “apoio crítico” e viajou para a Europa. Seu irmão Cid Gomes, num ato de campanha em favor de Haddad, reclamou do fato de o PT não fazer autocrítica, bateu boca com a claque do partido e sentenciou: “Não admitir os erros que cometeram é para perder a eleição. E é bem-feito. Vão perder feio! Porque fizeram muita besteira, porque aparelharam as repartições públicas, porque acharam que eram donos de um país”. Aos militantes que começaram a cantar o nome de Lula, fuzilou: “O Lula está preso, babaca”. Depois, fez um vídeo dizendo que Haddad é “o melhor para o Brasil”. As contradições, como se vê, estão por toda parte.

Publicado em VEJA de 24 de outubro de 2018, edição nº 2605

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