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O motorista evaporou

O sumiço do homem que é a única testemunha capaz de esclarecer as suspeitas que surgiram sobre as finanças da família do presidente eleito

Por Fernando Molica e Nonato Viegas
Atualizado em 9 jan 2019, 20h03 - Publicado em 14 dez 2018, 07h00

O policial aposentado Fabrício José Carlos de Queiroz trabalhou durante onze anos para o deputado estadual Flavio Bolsonaro. Oficialmente, ele era assessor do gabinete. Na prática, era uma espécie de motorista faz-tudo do parlamentar, além de ser íntimo de toda a família, incluindo o presidente eleito. A relação profissional entre os Bolsonaro e Queiroz é ainda mais extensa. A mulher e duas filhas de Queiroz também já integraram o quadro de assessores tanto de Flavio como de Jair Bolsonaro. A relação, antes aparentemente tranquila e cheia de confiança mútua, agora virou um estorvo.

O jornal O Estado de S. Paulo revelou que o nome do policial constava de uma relação de funcionários da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) que caíram numa espécie de malha fina. O Coaf, órgão federal que monitora as movimentações bancárias, detectou uma série de transações exóticas na conta bancária do motorista, a começar pelo volume “incompatível” com a renda do correntista.

Entre janeiro de 2016 e janeiro de 2017, Queiroz, que ganhava 23 000 reais entre salários da Alerj e da PM, movimentou 1,2 milhão de reais. Ao buscarem a origem de tanto dinheiro, os técnicos do Coaf esbarraram num segundo fato estranho: uma parte dos depósitos feitos na conta era oriunda do próprio motorista, da mulher dele e de suas duas filhas. Mas uma segunda parte vinha de outros funcionários da Alerj. Havia ainda uma curiosa coincidência de datas. O dinheiro entrava na conta de Queiroz nos dias subsequentes ao pagamento dos servidores da Alerj, conforme revelou em sua versão on-line a coluna Radar, publicada por VEJA. Os técnicos olharam então o destino do dinheiro — e encontraram um terceiro fato estranho: Queiroz sacava os valores na boca do caixa, em dinheiro vivo, tão logo recebia os depósitos.

NO GABINETE – Deputado Flavio Bolsonaro: “História bastante plausível” (Sergio Moraes/Reuters)

O Coaf classificou as operações financeiras do motorista como “suspeitas” — e a hipótese que emergiu da análise da movimentação atípica foi que estaria sendo cobrado um “pedágio” dos funcionários. A prática do pedágio não é uma novidade na Assembleia fluminense, nem no Parlamento brasileiro em geral. Em 2013, a deputada Inês Pandeló, do PT, foi condenada por ficar com uma parte do salário de seus assessores. A deputada Janira Rocha, do PSOL, quase perdeu o mandato depois que seus auxiliares denunciaram que eram obrigados a repartir com ela parte do salário. O relatório informa que oito assessores do deputado Flavio Bolsonaro depositavam regularmente dinheiro na conta do motorista logo depois do pagamento, incluindo o próprio Queiroz, suas filhas Nathalia e Evelyn e sua mulher, Márcia. No período, a família transferiu 221 000 reais (veja o quadro ao lado). A operação, por si só, ainda não é uma evidência concreta de irregularidade, mas a suspeita é inevitável: o deputado Flavio Bolsonaro embolsava parte do salário de seus servidores?

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Ao envolver o filho mais velho do presidente eleito, o caso já ganhou ares de escândalo. Mas apareceu um ingrediente ainda mais intrigante. O relatório do Coaf revelou a transferência de 24 000 reais da conta do motorista para a conta de Michelle Bolsonaro, a futura primeira-­dama. Perguntado a respeito, o presidente eleito disse que não era nada de mais. “Emprestei dinheiro para ele (Queiroz) em outras oportunidades. Nessa última agora, ele estava com um problema financeiro. Não foram 24 000, foram 40 000. Eu podia ter botado na minha conta. Foi para a conta da minha esposa, porque eu não tenho tempo de sair. Essa é a história, nada além disso”, disse, sem explicitar a data, o motivo do empréstimo, sem ter declarado a transação no seu imposto de renda e, para completar, sem explicar por que alguém com 1,2 milhão de reais passando por sua conta precisa tomar 40 000 emprestados. O deputado Flavio Bolsonaro, que se elegeu senador em outubro, também minimizou o caso: “Hoje o Fabrício Queiroz veio conversar comigo. Ele me relatou uma história bastante plausível. Me garantiu que não teria nenhuma ilegalidade nas suas movimentações”. E nada mais disse — nem ele nem Queiroz.

COISA VELHA - O plenário da Alerj: deputados condenados pela prática do “pedágio” (Bárbara Lopes/Agência O Globo)

Esperava-se que o motorista aparecesse, contasse a “história plausível” e colocasse um ponto-final no caso. Mas não foi isso que aconteceu. Até o fechamento desta edição, Queiroz continuava em silêncio. Mais que isso: ele sumiu — aliás, o sumiço tornou-se coletivo, pois ele, a mulher, as filhas e todos os assessores depositantes evaporaram, o que aumenta as suspeitas de que alguma coisa fora do normal se passava no gabinete de Flavio Bolsonaro. Em 2007, logo depois de as­sumir o mandato, Flavio contratou Queiroz, Márcia e Nathalia, que tinha então apenas 18 anos. Personal trainer, a jovem acumulava as tarefas do gabinete com aulas em academias de ginástica. Em 2016, ela foi transferida para o gabinete de Jair Bolsonaro, em Brasília, mas continuou trabalhando no Rio. Sua vaga foi preenchida pela irmã Evelyn, que trabalha como manicure. Juntas, Márcia e Nathalia transferiram 123 000 reais para a conta do motorista, pouco mais da metade de tudo o que receberam da Alerj durante treze meses. Dos quatro assessores da família Queiroz, apenas Evelyn continua no cargo. Márcia, que repassou 37 000 reais, deixou o gabinete em agosto de 2017. O motorista e Nathalia foram exonerados em outubro, às vésperas do segundo turno da eleição presidencial. Na época, o documento do Coaf já circulava entre procuradores e promotores do Ministério Público.

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ENDEREÇOS - A casa do motorista e o novo apartamento: 80% de financiamento (Agência O Globo/Marcos Michael/.)

O policial aposentado mora em uma casa simples no bairro Taquara, em Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio, uma aparente contradição para quem tem uma conta abastada. Em julho deste ano, o motorista fechou a compra de um apartamento de três quartos num condomínio com piscina e ampla área de lazer, situado no mesmo bairro. O prédio ainda não foi entregue e em muito difere do casebre onde ele vive até o momento. O negócio também chama atenção. Queiroz comprou o imóvel por 356 000 reais, dos quais 80% foram financiados pela Caixa Econômica Federal. Ou seja, apesar das movimentações vultosas e de receber 23 000 reais mensais há uma década, o motorista tinha apenas 71 000 reais para dar como entrada no imóvel.

Diante da repercussão do caso, na quarta-feira 12 o presidente eleito voltou a falar sobre o assunto. Não explicou nada, mas o tom mudou. “Se algo estiver errado, que seja comigo, com meu filho, com o Queiroz, que paguemos a conta desse erro. Não podemos comungar com o erro de ninguém”, afirmou. E acrescentou: “Aconteça o que acontecer, enquanto eu for presidente, nós vamos combater a corrupção com todas as armas do governo”. Bolsonaro disse uma novidade: o motorista, segundo ele, vai aparecer na semana que vem.

Com reportagem de Edoardo Ghirotto

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Publicado em VEJA de 19 de dezembro de 2018, edição nº 2613

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