No dia 17 de março de 2019, em um jantar com políticos e pensadores conservadores em Washington, Jair Bolsonaro fez um discurso revelador sobre o seu plano de ação. “O Brasil não é um terreno aberto, onde pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é de desconstruir muita coisa, desfazer muita coisa, para depois começarmos a fazer”, disse. Ao seu lado direito, estava o escritor Olavo de Carvalho, o delirante guru intelectual do governo. Há projetos interessantes nos ministérios da Infraestrutura, Economia e Agricultura, mas o fato — extremamente preocupante — é que a hora de “construir coisas” ainda não chegou a algumas pastas, especialmente as que são comandadas pela ala ideológica da gestão (e algumas delas são fundamentais para o desenvolvimento do Brasil). Com o segundo maior orçamento do país, 118 bilhões de reais por ano, o Ministério da Educação é o principal exemplo dessa ideologia paralisante. O legado de Abraham Weintraub, que deixou o cargo no último dia 18, inclui inação, ausência de ideias, baixa execução do orçamento, perda de protagonismo da pasta e gasto desnecessário de energia com temas miúdos. Não por acaso, ele era chamado de “Olavo da Esplanada”.
Em catorze meses no governo, Weintraub comprou briga com militares, congressistas, a comunidade judaica, a China, o Supremo Tribunal Federal, estudantes, reitores e educadores, mas não enfrentou problemas antigos como analfabetismo, qualidade baixa do ensino, estruturas precárias e evasão escolar. Até supostas vitrines do governo, como as escolas cívico-militares e o programa Future-se (de financiamento às universidades), não saíram do papel. As últimas ações de sua gestão caíram sem grande esforço — a medida provisória que permitia nomear reitores sem consultar a comunidade acadêmica e a portaria que revogava o incentivo a cotas na pós-graduação, dois exemplos de iniciativas que servem apenas para incendiar a militância e corroborar a tese de que não deixam o governo trabalhar. “Essa paralisia deriva da visão de um ministério que rejeita a realidade por um viés ideológico e, quando atua na realidade, visa ao projeto político de poder e não a sua esfera de atuação, que é a educação”, diz João Marcelo Borges, diretor de estratégia política do movimento Todos pela Educação e ex-consultor da Unesco. O resultado, afirma, é que o MEC perdeu o papel de coordenador da política educacional do país, que foi assumido por entes como a Frente Parlamentar Mista da Educação, os governos estaduais e ministérios como o da Economia. O Congresso tomou a dianteira nas discussões do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), do Fundeb (principal fundo de financiamento da educação básica, que precisa ser renovado em dezembro) e até da distribuição da merenda a alunos carentes após o fechamento das escolas. Os estados assumiram a implementação do Novo Ensino Médio e da Base Nacional Comum Curricular, políticas regulamentadas da gestão Michel Temer. “Sempre houve uma certa continuidade de projetos do MEC, mesmo com a mudança de governo. Isso não aconteceu agora”, explica Frederico Amancio, secretário da Educação de Pernambuco e vice-presidente do Consed (conselho que reúne as secretarias estaduais). Enquanto Weintraub travava a sua guerra ideológica contra o que chama de “vírus chinês” (para se referir ao coronavírus) utilizando preconceito e quadrinhos do Cebolinha, havia uma paralisação generalizada de obras em creches e escolas, relata o presidente da Undime (União dos Dirigentes Municipais de Educação), Luiz Miguel. “Isso é falta de foco”, afirma. Também há muitas queixas sobre as constantes trocas nas equipes técnicas, que fazem a máquina girar — só o Fundo Nacional de Educação, responsável pela merenda, pelo material e pelo transporte escolar, trocou de diretor três vezes em um ano.
O cenário de destruição se repete na Secretaria da Cultura, que já está com o seu quinto titular, o ator Mario Frias. O ex-galã de Malhação chegou ao posto por ter se tornado um militante radical de direita nas redes sociais. Na escolha, Bolsonaro deixou claro que não quer alguém “anódino” ou que busque o diálogo com a categoria, mas quem o defenda cegamente, como Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares, que permanece firme e forte no cargo enquanto se ocupa de ataques ao movimento negro. O último projeto do qual se ouviu falar na Secretaria de Cultura foi o Prêmio Nacional das Artes, lançado em janeiro e que não saiu do papel. “A não decisão é um método de governo”, diz Gabriela Lotta, professora de administração pública da FGV.
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Clique e AssineEssa ineficiência, não por caso, está atrelada a escolhas pouco técnicas e fincada apenas na defesa de uma plataforma ideológica radical, destinada à mobilização de eleitores. O problema é que isso acaba trazendo prejuízo ao país. Outros ministérios onde imperam questões ideológicas, como o das Relações Exteriores, Meio Ambiente e Direitos Humanos, vêm provocando danos à imagem do Brasil no exterior e, muitas vezes, atrapalhando a captação de negócios. Nesta semana, as embaixadas receberam carta de trinta instituições financeiras ameaçando retirar investimentos no país, caso não haja uma ação para deter a destruição na Amazônia. Parlamentos de países europeus e dos Estados Unidos, por sua vez, têm se aproveitado das notícias de descaso em questões ambientais e de direitos humanos para frear acordos comerciais com o Brasil. A fundação de pesquisas do Itamaraty, comandado por Ernesto Araújo, passou a dar palanque a palestras de blogueiros bolsonaristas e representantes da monarquia. A ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos) pediu a prisão de governadores e a demissão de técnicos do Ministério da Saúde que divulgaram orientações sobre o aborto legal — o que acabou acontecendo.
Alguns dos soldados do bolsonarismo empenhados nessa batalha ideológica provocam tanta confusão que não há como evitar baixas na tropa. A mais recente delas envolveu a saída de Weintraub do Ministério da Educação, com direito a um belo prêmio de consolação pelos serviços prestados: ganhou do governo indicação a uma diretoria do Banco Mundial, nos Estados Unidos. Para o seu lugar, Bolsonaro escolheu o professor Carlos Alberto Decotelli, que presidiu o bilionário FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação) por seis meses, de fevereiro a agosto de 2019, e chefiava atualmente a Secretaria de Modalidades Especializadas do MEC. Oficial da Marinha reformado, ele é tido como conservador politicamente — foi nomeado pelo ex-ministro Ricardo Vélez Rodríguez, que havia sido indicado ao cargo por Olavo. Também economista, como Weintraub, tem uma carreira acadêmica sólida: chegou a participar da criação de cursos de MBA Finanças no Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais — IBMEC, ao lado do ministro da Economia, Paulo Guedes. Em menos de dois anos da atual gestão, será o terceiro ministro a comandar a área. Como fronteira que separa as nações pobres do mundo desenvolvido, a qualidade da educação deveria ser uma das maiores batalhas do governo, e não um dos pilares de sua confusa — e nada produtiva — trincheira ideológica.
Publicado em VEJA de 1 de julho de 2020, edição nº 2693