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Mania de perseguição

Uma crise pueril com desfecho tosco revela as limitações de um presidente que enxerga conspirações onde elas não existem e elege inimigos imaginários

Por Daniel Pereira
Atualizado em 22 fev 2019, 07h00 - Publicado em 22 fev 2019, 07h00

A demissão de Gustavo Bebianno é um assunto tão desimportante que muita gente nem saberia definir sua função no Palácio do Planalto, mas sua saída foi uma aula magna sobre as misérias políticas do governo de Jair Bolsonaro. O conteúdo dos áudios de WhatsApp que o presidente e o ministro trocaram antes da demissão, divulgados pelo site de VEJA na terça-feira 19, é um sinal preocupante do modo de agir e de pensar do presidente. Nos oito minutos e 24 segundos que somam as doze mensagens de áudio, Bolsonaro deixa entrever que é um líder dado a enxergar complôs e deslealdades em cada esquina e, talvez mais perigoso, apresenta-se como um político que faz questão de cultivar inimigos (ouça os áudios).

Desde a campanha, Bolsonaro reclama de supostas conspirações orquestradas por inimigos declarados. Empossado, passou a desconfiar de traições também de integrantes graduados do governo. Em sua cabeça, as repartições públicas estão infestadas de esquerdistas, a imprensa quer derrubar o governo, a Igreja Católica conspira em nível mundial e há militares pensando em se sentar na cadeira do presidente. O ataque virtual do vereador Carlos Bolsonaro, o rebento Zero Dois, ao general Hamilton Mourão, vice-presidente da República, foi um sinal disso. A demissão de Bebianno, também com a participação decisiva do Zero Dois, foi o exemplo mais recente. Em ambos os casos, Bolsonaro, em vez de ser fonte de pacificação, foi a origem da desordem. O resultado não poderia ser pior: tanto os generais, que comandam postos estratégicos da administração, como os parlamentares, que decidirão o futuro da agenda econômica, estão contrariados com o que consideram ingerência indevida dos filhos do presidente nos rumos do governo. Ou seja, até agora o principal fator de instabilidade e confusões tem sido a própria família presidencial.

Advogado de Bolsonaro em processos judiciais e coordenador de sua campanha presidencial, Bebianno foi lançado à frigideira depois que o jornal Folha de S.Paulo revelou que o PSL, sob a presidência do agora ex-­ministro, usou candidaturas-laranja para desviar verbas públicas. Numa tentativa de amainar a atmosfera de crise provocada pela denúncia, o então ministro disse ao jornal O Globo que havia conversado três vezes com o presidente sobre o assunto. Carlos postou nas redes que isso era uma “mentira absoluta”. Bolsonaro chancelou a acusação. Entre os aliados, dentro e fora do governo, as acusações levaram à seguinte indagação: se Bebianno, que era da cozinha do presidente, recebe ataques ferozes em público, o que acontecerá com apoiadores de patente mais baixa caso desagradem ao mandatário e à sua prole? Estava plantada a semente da desconfiança. A fim de encerrar a crise, ministros e parlamentares entraram em campo para tentar uma reconciliação entre o presidente e Bebianno. Ninguém sabe a razão, mas é certo que simplesmente não funcionou.

“As repartições estão infestadas de esquerdistas, a imprensa quer derrubar o governo, a Igreja Católica conspira em nível mundial e há militares pensando em se sentar na cadeira do presidente”

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CONSPIRATA – VEJA revelou em seu site a troca de mensagens de áudio entre o presidente e Bebianno: “Batata quente” (Mauro Pimentel/AFP/VEJA)

Na sexta-feira 15, Bolsonaro fez circular a informação de que seu ministro seria demitido, decisão que só foi formalizada na segunda-feira 18. O porta-voz do Planalto, general Rêgo Barros, declarou que a razão da exoneração do ocupante de um cargo público foi de “foro íntimo” do presidente — e nada mais esclareceu. Em vídeo, Bolsonaro afirmou que a saída ocorreu devido a incompreensões e mal-entendidos, elogiou Bebianno e não explicou nada (veja a coluna de Roberto Pompeu de Toledo). Foi uma tentativa de virar a página. Mais uma vez, não funcionou. Já na terça-feira 19, a crise recrudesceu quando o site de VEJA divulgou mensagens de áudio entre Bolsonaro e Bebianno. As mensagens mostram que o então ministro de fato conversou com o presidente, como dissera a O Globo, e que, se alguém mentiu, foram o presidente da República e seu filho Carlos.

ENVENENADOR – Carlos, filho do presidente e pivô da crise (Marcelo Regua/Agência O Globo)

Os áudios são uma evidência do clima de futricas e suspeitas de deslealdade nos gabinetes palacianos. Um dos pontos de atrito com Bebianno é a relação com a chamada grande imprensa, a quem Bolsonaro sempre faz questão de atacar. Bolsonaro, sem dizer nada, envia para Bebianno uma cópia da agenda do próprio ministro na qual consta uma audiência com o vice-presidente de Relações Institucionais do Grupo Globo, Paulo Tonet Camargo. Bebianno perguntou: “Algo contra, capitão?”. Bolsonaro retrucou: “Inimigo passivo, sim. Agora, trazer o inimigo para dentro de casa é outra história”. O presidente continuou: “Pô, cê tem que ter essa visão, pelo amor de Deus, cara. Fica complicado a gente ter um relacionamento legal dessa forma porque cê tá trazendo o maior cara que me ferrou — antes, durante, agora e após a campanha — para dentro de casa. Me desculpa. Como presidente da República: cancela, não quero esse cara aí dentro, ponto-final”. Ao noticiar os áudios no Jornal Nacional, o apresentador William Bonner leu uma nota da emissora: “O Grupo Globo considera que não tem nem cultiva inimigos. A própria natureza de sua atividade jamais permitiria qualquer postura em contrário”. Curiosamente, o funcionário da Globo cuja visita a Bebianno deflagrou a indignação de Bolsonaro esteve em audiência no Planalto em duas ocasiões. Em janeiro, encontrou-se com o general Santos Cruz, da Secretaria de Governo. No início de fevereiro, foi recebido pelo general Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional. Até onde se sabe, nenhum general foi repreendido por Bolsonaro, o que sugere que o presidente tinha uma implicância especial com o então ministro Bebianno.

Nas mensagens divulgadas por VEJA, Bolsonaro e Bebianno também conversam sobre o suposto esquema de candidaturas-laranja do PSL. O presidente externa sua contrariedade com o que considera uma tentativa do auxiliar de transferir o problema para o gabinete presidencial. “Querer empurrar essa batata quente desse dinheiro lá pra candidata em Pernambuco pro meu colo, aí não vai dar certo. Aí é desonestidade e falta de caráter.” Fica claro que o incômodo do presidente não é com a possível existência do esquema de desvios no seu partido, mas com a possibilidade de seu assessor estar tentando, de algum modo, envolvê-lo no escândalo. Bebianno tenta se explicar. Depois, diz que o presidente está “bem envenenado”, insinuando que o veneno teria sido inoculado por Carlos Bolsonaro. Abre-se, então, uma discussão insólita. Bebianno afirma que não mentiu, como alegaram pai e filho, porque conversou com o presidente.

SINAL AMARELO – O governo sofreu a primeira derrota no Congresso: alerta de que será preciso negociar (Wilson Dias/Agência Brasil)

“Capitão, há várias formas de se falar. Nós trocamos mensagens ontem três vezes ao longo do dia. Qual a relevância disso, capitão?” Bolsonaro não recua e alega que troca de mensagens por áudio não pode ser considerada uma conversa. A tese é cômica, ainda mais quando defendida por alguém que faz anúncio oficial por rede social. “Ô, Gustavo, usar da… Que usou do WhatsApp para falar três vezes comigo, aí é demais da tua parte, aí é demais, e eu não vou mais responder a você.” Depois de formalizada a demissão, Bebianno disse à rádio Jovem Pan que Carlos Bolsonaro foi o responsável por sua exoneração: “Ele fez macumba psicológica na cabeça do presidente”. Para reforçar a influência nefasta do Zero Dois no governo, o ex-ministro lembrou o tuíte em que o vereador registrou que havia aliados interessados na morte de seu pai. Ninguém teve dúvida de que se referia ao vice-presidente, general Hamilton Mourão.

Vítima de um atentado a faca em setembro passado, Bolsonaro vive às voltas com inimigos reais ou imaginários. São conhecidas as suas cruzadas verbais contra o socialismo, os petistas infiltrados na máquina pública e a imprensa. É notória também a pregação da ala mais ideológica de seu governo contra o “globalismo” e o “marxismo cultural”, o que tem provocado ruídos nas relações diplomáticas e comerciais. Nem instituições escapam dessa abordagem um tanto paranoica. Bolsonaristas estão certos de que a Igreja Católica e o Supremo Tribunal Federal (STF) têm um plano para inviabilizar o governo, e por isso resolveram reagir. A deputada federal Bia Kicis (PSL-DF) está coletando assinaturas para revogar a “PEC da Bengala”, que aumentou de 70 para 75 anos a idade da aposentadoria compulsória de ministros de tribunais superiores. O objetivo da PEC, na época, era impedir a abertura de vagas, que seriam preenchidas pela então presidente Dilma Rousseff. Agora, o objetivo é dar mais poder ao presidente. Se a revogação for aprovada, quatro integrantes do STF terão de deixar a Corte — entre eles, o decano Celso de Mello, que votou a favor de equiparar, para fins criminais, a homofobia ao racismo. Com esse casuísmo, Bolsonaro poderá indicar nomes afeitos às suas ideias para o Supremo. A manipulação da composição da mais alta corte de Justiça do país é um ataque claro às instituições.

VERMELHOS – Manifestação de deputados da oposição: o inimigo veste laranja (Cristiano Mariz/VEJA)

Ao demitir Bebianno, o presidente acha que debelou um possível foco de traição, mas, por enquanto, só colheu prejuízos. Bebianno será substituído na Secretaria-Geral pelo general Floriano Peixoto, que era o número 2 da pasta. Como agora resta apenas um ministro civil no Palácio do Planalto, Onyx Lorenzoni, cresceram em Brasília as apostas de que os militares ( já são oito generais em postos-chave do governo) vão tutelar Bolsonaro, sobrepondo-­se aos filhos do presidente e à ala mais ideológica do governo. A saída de Bebianno também fragiliza a posição de Bolsonaro em sua relação com o Congresso. Na terça-­feira 19, o plenário da Câmara aprovou a revogação de um decreto que aumentava o número de servidores autorizados a declarar o sigilo de documentos oficiais. Na primeira das votações sobre o caso, o governo não conseguiu reunir nem sessenta votos a seu favor. A reforma da Previdência requer o apoio de 308 dos 513 deputados. É normal que às vésperas de votações importantes os parlamentares vendam dificuldades para receber facilidades, como cargos e verbas públicas. Com quase trinta anos de mandato como deputado do baixo clero, Bolsonaro conhece essa lógica. Restam a ele duas alternativas: demonizar a negociação com os partidos, como fez durante a campanha, ou negociar com as principais agremiações, sem render-se ao fisiologismo.


Caixa dois não é mais tão grave

DE JUIZ A MINISTRO – Moro com Maia e Lorenzoni: adaptação do discurso (Cristiano Mariz/VEJA)

O ministro da Justiça, Sergio Moro, levou seu pacote anticrime ao Congresso na terça-feira, um dia depois da demissão de Gustavo Bebianno — e no mesmo dia em que o site de VEJA divulgava a troca de mensagens de WhatsApp entre o presidente Jair Bolsonaro e o já ex-ministro da Secretaria-Geral da Presidência. Os holofotes passaram muito rapidamente por ele, mas foi tempo suficiente para iluminar uma contradição notável entre o novo superministro do governo Bolsonaro e o juiz que, na Justiça Federal de Curitiba, condenou empresários, políticos e um ex-presidente da República. Para facilitar a tramitação de suas propostas, Moro fatiou o pacote em três partes: um projeto que engloba as medidas para combater a corrupção e o crime organizado, outro de lei complementar para modificar competências da Justiça Eleitoral e um de lei ordinária para criminalizar o caixa dois, que atualmente é punido apenas pela Justiça Eleitoral. Até aí, pode ser uma questão de estratégia para aumentar as chances de aprovação. Mas Moro também abrandou seu discurso sobre o crime de caixa dois, que tanto desvirtuou a democracia brasileira.

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Em abril de 2017, quando já havia consolidado a fama como magistrado à frente das sentenças da Lava-Jato, Moro foi aos Estados Unidos para uma palestra na Harvard. Disse então que o caixa dois era “trapaça, um crime contra a democracia” e pior do que o enriquecimento ilícito. “Se eu peguei essa propina e coloquei em uma conta na Suíça, isso é um crime, mas esse dinheiro está lá, não está mais fazendo mal a ninguém naquele momento. Agora, se eu utilizo para ganhar uma eleição, isso para mim é terrível.” Muita gente acreditou na interpretação de Moro e a aplaudiu. Ela ajudou a criar o caldo de cultura necessário para enjaular políticos que se locupletaram com o caixa dois. É uma pena que, no Congresso, na semana passada, ao ser exposto ao escrutínio de parlamentares que se lambuzaram com essa prática no passado, Moro tenha se mostrado outro. Ele chegou a afirmar que “caixa dois é um crime grave, mas não tem a mesma gravidade que corrupção”. Pressionado por jornalistas diante da flagrante contradição, Moro inventou uma diferenciação “técnica” entre corrupção e caixa dois.

Auxiliares da Casa Civil — cujo titular, Onyx Lorenzoni, admitiu ter recebido caixa dois — já vinham dizendo que a criminalização dessa prática só seria discutida na Câmara se o texto não tivesse efeito retroativo. Ou seja, se os delitos do passado não fossem passíveis de punição. A tramitação do caixa dois separada do pacote original pode ter um efeito duplo. Facilitar a aprovação do pacote e, ao mesmo tempo, abrir caminho para os deputados enterrarem de vez o projeto específico sobre caixa dois. Se Moro for fiel ao que dizia o juiz, vai lamentar em público caso isso venha a acontecer. Mas, se continuar dentro do novo figurino de ministro, talvez diga que, afinal de contas, rejeitar o projeto do caixa dois é ruim mas não tem a mesma gravidade.

Publicado em VEJA de 27 de fevereiro de 2019, edição nº 2623

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