Quando assumiu a Presidência da República, Dilma Rousseff lidava com a pecha de poste, uma forma pejorativa usada por adversários e até por petistas para dizer que sua candidatura e sua administração eram invenções de Lula, que continuaria a mandar de fato no país. A presidente sabia das desconfianças em torno dela. Convocado para ser seu chefe da Casa Civil, Antonio Palocci dizia que o plano da mandatária era se distanciar de forma gradativa da sombra do padrinho político. No primeiro ano de mandato, a gestão teria mais a feição de Lula do que a de Dilma. No segundo, ocorreria o inverso. Daí em diante, segundo Palocci, o governo seria predominantemente dela. Em seu terceiro mandato no Palácio do Planalto, Lula parece seguir uma lógica parecida. Na disputa contra Jair Bolsonaro, ele formou uma frente ampla, conceito que guiou parte das decisões tomadas no ano passado, como a formação do ministério. Neste ano, no entanto, o petista tem feito cada vez mais gestos à esquerda, afastando-se de aliados de centro que foram fundamentais em 2022 e provavelmente serão decisivos em 2026. Essa guinada, se confirmada, poderá custar caro no futuro.
Os sinais de uma provável mudança de direção são mais frequentes na área da economia, impulsionados pela dificuldade do presidente de resistir à tentação de aumentar o intervencionismo estatal e os gastos públicos. Depois de fritar o aliado durante semanas, Lula demitiu o petista Jean Paul Prates do comando da Petrobras, substituindo-o por Magda Chambriard, que dirigiu a Agência Nacional do Petróleo (ANP) no governo Dilma Rousseff. Apesar de ter “abrasileirado” a política de preços da companhia, como queria Lula, Prates era considerado simpático demais ao mercado e um obstáculo ao plano do presidente de usar a Petrobras para tirar do papel projetos considerados prioritários pelo Planalto, independentemente de sua viabilidade econômica ou de sua pertinência em termos de estratégia de mercado. Em linha com os ministros Rui Costa (Casa Civil) e Alexandre Silveira (Minas e Energia), que trabalharam pela demissão de Prates, Lula quer que a empresa acelere investimentos em gás, fertilizantes e refinarias — e volte a impulsionar a indústria naval, um antigo sonho do PT que, como descobriu a Operação Lava-Jato, tornou-se terreno fértil para corrupção grossa.
Magda Chambriard assume o posto com missões bem definidas, todas estipuladas pela equipe do presidente. Com essa orientação, o fantasma do intervencionismo estatal voltou a assombrar. E não apenas na Petrobras. Desde o início do governo, Lula e a presidente do PT, a deputada federal Gleisi Hoffmann, reclamam da atuação do chefe do Banco Central, Roberto Campos Neto, indicado ao cargo por Jair Bolsonaro. Eles dizem que a taxa básica de juros definida pelo BC, que tem contribuído para manter a inflação sob controle, dificulta o crescimento econômico do país e, por isso, exigem cortes expressivos. Essa pressão tem zero embasamento técnico e muita conveniência política. Com ela, o presidente tenta sedimentar no imaginário popular a impressão de que, se a economia não decolar, a culpa não é dele, Lula, mas da política monetária asfixiante e pró-mercado comandada por Campos Neto. Teses falaciosas, como se sabe, não são exclusividade do bolsonarismo. Desde agosto de 2023, o Comitê de Política Monetária do BC tem cortado a taxa básica de juros, mas na sua última reunião reduziu o ritmo da queda de 0,5 para 0,25 ponto percentual.
A decisão foi tomada por 5 votos a 4, saindo derrotados os diretores indicados por Lula. Foi o suficiente para que se espalhasse o temor de que, tão logo acabe o mandato de Campos Neto, no fim deste ano, o presidente da República lançará mão da escolha do sucessor no cargo para interferir no BC, que goza de autonomia prevista em lei aprovada por ampla maioria no Congresso. Essa suspeita cresceu a ponto de provocar um comentário de Gabriel Galípolo, diretor do BC nomeado por Lula e considerado favorito para substituir Campos Neto à frente do banco. Num evento com investidores, Galípolo disse que também cogitou cortar a taxa básica de juros em 0,25 ponto percentual e que havia argumentos técnicos para os dois lados. Ele tentou, assim, sinalizar independência em relação ao Planalto, enquanto Gleisi Hoffmann classificava a decisão do BC de um crime contra o país. Combativa, a deputada muitas vezes verbaliza aquilo que Lula pensa, mas evita falar. Ao lado de Rui Costa, Gleisi também está na linha de frente do lobby por mais gastos públicos, que pressiona desde sempre o ministro da Fazenda, Fernando Haddad.
A vida do chefe da equipe econômica não é fácil. O presidente não desautoriza Haddad, mas sempre que pode defende a ampliação dos gastos ou a concessão de favores pela União. Lula também dá corda às pregações de Rui Costa, porta-voz da tese de que nenhum ajuste fiscal pode comprometer programas como o PAC e o Minha Casa, Minha Vida. O presidente e o PT resistem a qualquer iniciativa destinada a cortar despesas ou, pelo menos, torná-las mais racionais. Terceira colocada na última eleição presidencial e peça-chave da frente ampla formada para derrotar Bolsonaro, a ministra do Planejamento, Simone Tebet, tem defendido a desvinculação entre a política de valorização do salário mínimo e os benefícios previdenciários e a inclusão do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) na conta do piso de gastos com educação. Essas medidas teriam como objetivo conter a expansão das despesas obrigatórias e desengessar o Orçamento da União. O debate dessas ideias mal começou, mas a reação já é enorme.
A deputada Gleisi Hoffmann, sempre ela, diz que, se adotadas, tais iniciativas contrariarão o programa de governo eleito em 2022. “É no mínimo preocupante que sejam defendidas pela ministra Simone Tebet. Responsabilidade fiscal não tem nada a ver com injustiça social”, escreveu numa rede social. O raciocínio de Gleisi é no mínimo controverso. Em 2022, Lula derrotou Bolsonaro numa batalha de rejeições. O eleitorado escolheu o que considerou menos pior para o país. Até os petistas reconhecem isso. Na disputa mais acirrada desde a redemocratização, Lula saiu vitorioso porque conseguiu atrair apoios de segmentos de centro e da centro-direita que enxergavam em Bolsonaro uma ameaça real à democracia. Não houve uma opção entusiasmada pelo programa de governo do PT. Não houve um voto de confiança na cartilha petista para a economia. Longe disso. Na ocasião, prevaleceu nas urnas a perspectiva de pacificação do país, de moderação, de um governo que honrasse a frente ampla. Algo que tem ocorrido cada vez menos, inclusive na seara política.
Diante do maior desastre natural da história do Rio Grande do Sul, o presidente resolveu politizar a tragédia e indicar como ministro extraordinário para cuidar da reconstrução do estado o deputado petista Paulo Pimenta, que comandava a Secretaria de Comunicação Social da Presidência. Adversário local do governador Eduardo Leite (PSDB), Pimenta é cotado para concorrer ao Senado ou ao próprio governo em 2026. O novo cargo dá a ele visibilidade e uma oportunidade de ouro de colher dividendos eleitorais, mas também pode ser um catalisador de embates, o que ficou claro numa de suas primeiras entrevistas. Perguntado sobre o que achava das críticas do deputado federal Aécio Neves à sua nomeação para o posto, Pimenta respondeu: “Aécio Neves? Não conheço”. Tudo que os gaúchos não precisam agora é de disputa eleitoral antecipada. O momento exige cooperação entre União, estado e municípios, para viabilizar o recomeço da vida dos desabrigados e a reconstrução da economia local. Pelo cargo que ocupa, Lula tem condições de liderar esse processo, desde que priorize os desafios administrativos, e não as conveniências eleitorais dos quadros de seu partido.
Com o PT à frente dos principais ministérios, o presidente tem usado as eleições municipais para fazer concessões a aliados, especialmente de centro. Por decisão dele, os petistas não terão candidatos a prefeito em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Salvador. Com essa estratégia, Lula espera receber em troca o apoio de legendas como MDB e PSD à sua reeleição, em 2026. A reedição da frente ampla seria até natural caso Bolsonaro pudesse concorrer, mas ele está inelegível. Com o capitão fora do páreo, a aliança com siglas de centro não se repetirá tão facilmente. Lula corre sério risco de ficar isolado se insistir em trilhar a direção errada. Não parece boa ideia para quem enfrenta um alto índice de rejeição.
Publicado em VEJA de 24 de maio de 2024, edição nº 2894