A relação de confiança entre Lula e Fernando Haddad, semeada ainda no primeiro governo do PT, é consistente e até aqui inabalável. O presidente fez do “petista com cara de tucano” — como gostava de se referir ao auxiliar — ministro da Educação, candidato a prefeito de São Paulo em 2012 (vitorioso) e 2016 (derrotado) e postulante à Presidência da República em 2018, quando chegou ao segundo turno, mas perdeu para Jair Bolsonaro. A folha de serviços prestados já era extensa quando Lula, depois de vencer a eleição em 2022, convocou Haddad para a sua mais desafiadora missão: comandar o Ministério da Fazenda, cargo estratégico para qualquer gestão, capaz de catapultar ou sepultar carreiras. Mais do que uma escolha técnica, foi uma aposta política, que reforçou a percepção de que o mandatário considera Haddad um sucessor natural e que ele pode concorrer novamente ao Palácio do Planalto no futuro. Basta que se “viabilize”, termo singular que demanda esforços plurais, como realizar um trabalho bem-sucedido na pasta, conciliar interesses diversos e resistir a sabotagens internas. Não será fácil.
Quando aceitou o convite para chefiar a equipe econômica, o ministro disse a Lula que a sua prioridade era equilibrar as contas públicas, porque só assim seria possível ao governo cumprir as promessas de campanha, impulsionar a economia de forma sustentável e combater a desigualdade social. O plano de Haddad sempre foi fazer o ajuste de forma moderada e gradual, até para não melindrar o chefe e não ser acusado de tocar uma política econômica que, segundo os petistas, foi rejeitada nas urnas. No ano passado, com a ajuda do Centrão, ele conseguiu aprovar o novo arcabouço fiscal e ajudou o presidente a recompor o orçamento de programas sociais. Uma vitória importante, mas parcial. Desde então, Haddad lidera uma cruzada heroica para tentar conter o crescimento acelerado das despesas obrigatórias, que, se não for revertido, pode engessar o governo, deixando-o sem recursos para investir e até para custear a máquina pública.
Diante desse risco, o ministro se lançou, ainda no primeiro semestre deste ano, numa ofensiva para convencer o presidente e os colegas de governo e de partido a abraçarem um plano de corte de gastos. Rechaçada de início e deixada em banho-maria durante meses, a proposta voltou à tona com a escalada tanto da cotação do dólar como da preocupação de agentes do mercado com a saúde das contas públicas. Haddad, que conta nos bastidores com o apoio de nomes como Edinho Silva e José Dirceu, convenceu Lula de que era hora de uma nova etapa de ajuste. Ele foi autorizado a desenhar o pacote e chegou a declarar que as medidas seriam divulgadas rapidamente. Até o fechamento desta edição, no entanto, nada havia sido anunciado depois de três semanas de negociação. O motivo do impasse é o de sempre: influenciado por uma ala que reza a cartilha do “gasto é vida”, o presidente hesita na decisão de realizar os cortes, e os ministros só concordam com a redução de despesas desde que não sejam em programas de suas respectivas áreas. Ou seja: dentro do governo, a oposição a cortar na própria carne não é nada desprezível.
O exemplo, muitas vezes, vem de cima. Enquanto participa de reuniões sobre o tema e avaliza os esforços de Haddad, o presidente vira e mexe faz ressalvas públicas à dimensão da redução dos gastos. Ora reclama da pressão do mercado, ora diz não aceitar que os custos recaiam sobre os ombros dos mais pobres, ora deixa claro que não se sente bem com qualquer ideia de corte. Relatório de um dos maiores bancos do país estima que o governo terá de anunciar uma tesourada de 35 bilhões de reais para que o arcabouço fiscal não fique comprometido. “Eu vejo o mercado falar bobagem todo dia. Não acredite nisso. Eu já venci eles e vou vencer outra vez”, declarou Lula numa entrevista recente. Em outra, cobrou que os poderes Legislativo e Judiciário também deem sua contribuição e dividam a responsabilidade com o Executivo: “Se eu fizer um corte de gasto para diminuir a capacidade de investimento do Orçamento, a pergunta que faço é a seguinte: o Congresso vai aceitar reduzir as emendas de deputados e senadores para contribuir com o ajuste fiscal? Os empresários que vivem de subsídio do governo vão aceitar abrir mão de um pouco de subsídio para a gente poder equilibrar a economia brasileira? Eu não sei se vão aceitar”.
Desde o início do governo, Haddad busca reduzir o volume bilionário de isenções tributárias concedidas pelo governo. O ministro até tentou, por exemplo, acabar com um programa de benefícios fiscais para o segmento de eventos e com a desoneração de setores da economia, mas, diante da resistência de parlamentares e empresários, foi obrigado a negociar um acordo, marcado por concessões de lado a lado. Mas hoje o ponto essencial do debate é outro: conter o avanço das despesas obrigatórias do Executivo. Há propostas de todos os tipos sob avaliação, como mudanças no piso orçamentário das áreas de saúde e educação, adoção de regras mais rígidas para a concessão de benefícios previdenciários e até fixação de teto para a política de correção do salário mínimo. Nos últimos dias, o regime de previdência dos militares, um tema sempre sensível, ainda mais numa gestão petista, entrou na mesa de negociação. São muitas possibilidades apresentadas pela equipe econômica e baixíssima a receptividade a elas. Dois ministros, inclusive, ameaçaram demitir-se caso programas relacionados a suas pastas fossem afetados: Luiz Marinho (Trabalho) e Carlos Lupi (Previdência). Ambos não são propriamente conhecidos pela excelência técnica. O sindicalista Marinho, por exemplo, apresentou propostas trabalhistas retrógradas, que foram rapidamente rechaçadas por empresários e trabalhadores.
Disciplinado, paciente e cada vez mais calejado na negociação política, Haddad costuma dizer que enxerga a floresta enquanto os colegas se preocupam cada um com a sua árvore. Nas negociações do pacote, o ministro tem afirmado que seu plano de ajuste não tem o objetivo de agradar ao mercado, mas manter de pé o arcabouço fiscal. Haveria uma distância bilionária entre uma coisa e outra. As medidas ajudariam a melhorar as finanças e não prejudicariam as ações do governo, sobretudo em áreas sociais. Além disso, melhorariam o ambiente econômico e a confiança dos investidores. Se esse equilíbrio será atingido, só será possível saber após a divulgação e implementação do pacote. O ministro também tem lembrado que o ajuste é considerado fundamental para permitir o controle da inflação, a redução da taxa de juros e a elevação da nota de crédito do país, que poderiam impactar de forma positiva o dia a dia e o humor do eleitorado. Um aperto agora fortaleceria o governo para 2026, quando Lula disputará a reeleição — ou um nome indicado por ele, talvez o próprio Haddad, concorrerá ao Palácio do Planalto.
Por enquanto, essa pregação não convenceu algumas estrelas petistas. A presidente do PT, a deputada Gleisi Hoffmann, endossou um manifesto divulgado contra o pacote de corte de gastos. Como ela comanda o partido do governo, a iniciativa causou perplexidade e levou correligionários a criticá-la. O ruído não é novidade. Desde o início do terceiro mandato de Lula, Gleisi contesta medidas defendidas por Haddad e reclama do risco de arrocho ou de “austericídio”. No debate do momento, ela alega que sua crítica não foi ao plano em si, mas a uma pressão exercida pelo mercado e alguns meios de comunicação. “Eles esperam impor ao governo e ao país o sacrifício dos aposentados, dos trabalhadores, da saúde e da educação, que pode até combinar com o neoliberalismo frenético do governo passado, mas não com o governo que foi eleito para reconstruir o país. Invertem a equação da economia real, que pede mais crédito e investimentos, e ameaçam com mais juros e mais especulação com o câmbio”, escreveu numa rede social. Contemporizador, Haddad costuma reagir às contestações internas dizendo que ele, como o PT, preza o debate e a pluralidade de ideias. Longe dos holofotes, ele ainda acrescenta que muitas vezes o fogo amigo é teatro, encenação, coisa da política, para agradar à plateia.
O ministro, que na semana passada foi escolhido uma das 100 lideranças climáticas mais influentes pela revista Time, só sai do sério quando identifica ações deliberadas para minar o seu trabalho. Nessa área, seu rival é o chefe da Casa Civil, Rui Costa, porta-voz preferencial da cartilha de Lula contra o corte de gastos. Nos bastidores do governo, a disputa de poder entre os ministros pega fogo há tempos. Numa reunião com os dois, Lula testemunhou e incentivou o tiroteio entre eles. Um acusava o outro de sabotagem e tentativa de desestabilização. Haddad credita a Costa o fracasso de uma medida provisória (MP) que aumentava a carga tributária da indústria. Já Costa identifica a digital de Haddad nas críticas feitas por agentes econômicos, veículos de comunicação e colegas de Esplanada sobre sua gestão na Casa Civil. Essa queda de braço continua e tem como pano de fundo a escolha do substituto de Lula nas eleições presidenciais quando ele não puder ou não quiser mais concorrer. Haddad é considerado favorito pela classe política, mas Costa corre por fora, na esperança de reeditar o enredo que consagrou Dilma Rousseff, sua antecessora na Casa Civil.
Segundo um dos ministros mais próximos de Lula, o presidente contesta ideias de Haddad em público, faz ressalvas a algumas de suas propostas, mas no final atua em parceria com o chefe da equipe econômica. Foi assim, por exemplo, quando o governo anunciou um corte de 25,9 bilhões de reais em agosto, e a Petrobras mudou de entendimento e resolveu distribuir dividendos extras aos acionistas. Em Brasília, há quem diga que o presidente e o ministro encenam um roteiro previamente combinado, no qual um discursa para a base eleitoral de esquerda enquanto o outro, aos trancos e barrancos, faz avançar medidas mais alinhadas com o centro do espectro político. Essa combinação ampliaria o leque de potenciais eleitores da dupla. Em conversas reservadas, Haddad prefere dizer que seu cargo implica solidão e isolamento. Não é bem assim. Muitos no partido o veem hoje como a promessa mais concreta de renovação da esquerda. Ele afirma, no entanto, que não pensa na Presidência, porque muitos de seus antecessores no ministério, ao caírem nessa tentação, ficaram pelo caminho. Sua prioridade seria melhorar a economia do país e impedir a volta de golpistas ao poder — com a reeleição de Lula ou a vitória de outro nome. A melhor chance do PT em 2026, de fato, está ligada ao desempenho de Haddad.
Publicado em VEJA de 15 de novembro de 2024, edição nº 2919