Para justificar seu medo de voar, Tom Jobim dizia que o avião, além de ser mais pesado que o ar, havia sido inventado por um brasileiro. A piada do compositor funciona pelo seguinte motivo: por força das limitações do país e mesmo de alguns preconceitos, inovações desenvolvidas ou adotadas em larga escala por aqui com um certo pioneirismo carregam algum tipo de desconfiança. Esse mecanismo de negação costuma servir de combustível a teorias conspiratórias e lançar sombras de dúvida até sobre ferramentas consagradas. É o que acontece agora com as urnas eletrônicas, colocadas injustamente na posição de alvos em esforço para questionar sua confiabilidade. A “solução” apresentada pelos críticos é uma volta ao passado, com a exigência da impressão do voto dado pelo sistema atual. Tal movimento faz vistas grossas ao fato de que as eleições digitais resolveram justamente o problema crônico de fraudes dos tempos das velhas cédulas em papel. Enquanto nessa época os cambalachos eram comuns, nos 25 anos de experiência com as urnas eletrônicas nunca houve uma denúncia séria sobre qualquer falcatrua. Com isso, por incrível que pareça, o Brasil virou um exemplo de eficácia, rapidez e transparência na apuração de eleições.
Agora, com sérias possibilidades de um retrocesso via Congresso Nacional, é quase certo que os tempos de confusão estarão de volta no pleito de 2022. Com firme apoio da base política do governo federal, há boas chances de vitória de um projeto para obrigar a impressão dos votos feitos nas urnas eletrônicas. Na teoria, isso serviria para garantir a possibilidade de checagem em caso de qualquer desconfiança. Na prática, vai demandar um investimento de 2 bilhões de reais e ajudar a judicializar o resultado, com hordas de derrotados pedindo recontagem de votos nos tribunais. Não bastassem os custos e o tempo escasso para a execução, dependendo do formato final do projeto (discute-se a possibilidade de recontagem de um universo entre 15% e 20% das urnas eletrônicas a partir dos votos impressos), a iniciativa sempre dará margem a dúvidas daqueles com interesse em colocar o resultado sob suspeita.
O dado mais espantoso dessa história é que o principal ideólogo do movimento destinado a pôr em xeque o sistema atual é um político que só se beneficiou dele. Jair Bolsonaro venceu ao longo da carreira cinco eleições seguidas a cargos no Legislativo e chegou ao Palácio do Planalto consagrado pelas votações nas urnas eletrônicas. Ignorando prioridades do país no momento (a começar pela catástrofe de quase meio milhão de mortos pela Covid-19), o capitão não perde hoje oportunidade de trazer à baila sua velha teoria conspiratória de que lhe teriam roubado a vitória em primeiro turno em 2018. Ele nunca trouxe nenhuma prova disso, tampouco explicou a óbvia incoerência da tese: se havia mesmo um plano para prejudicá-lo, como explicar sua vitória no segundo turno da mesma eleição? Os fraudadores se contentaram apenas com o primeiro turno?
Exemplo recente de sua campanha pelo retorno do voto impresso ocorreu no dia 15 de maio. Montado a cavalo e vestindo chapéu de boiadeiro, ele marchou pelas ruas de Brasília e, num determinado momento, subiu em um trio elétrico. Microfone à mão, falou sobre 2022 e vociferou contra o outro favorito nas pesquisas, o ex-presidente Lula: “Se não tivermos o voto auditável, esse canalha, pela fraude, ganha as eleições”. Dois dias antes, o Congresso havia colocado em marcha o plano para aprovar a PEC que obriga a impressão de votos em eleições e, sob a bênção do presidente, criou uma comissão especial para analisar o projeto da deputada federal Bia Kicis (PSL-DF). O relatório deve ser votado até o fim de julho e a aprovação depende do apoio de três quintos dos votos dos deputados e dos senadores, em dois turnos. “Há tempo hábil para aprová-lo e implementar o voto impresso para 2022”, acredita Kicis.
Devido ao tempo curto, o Palácio do Planalto vem colocando bastante energia para mobilizar sua tropa. Na comissão, estão presentes os principais aliados de Bolsonaro na Câmara, a começar pelo filho Zero Três, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), a própria Bia Kicis e o pastor Marco Feliciano (Republicanos-SP), membros titulares, e Carla Zambelli (PSL-SP), que é suplente. A presidência e a relatoria ficaram também nas mãos de gente amiga: os olavistas Paulo Martins (PSC-PR) e Filipe Barros (PSL-PR), respectivamente. A PEC não vislumbra a volta às cédulas de votação manual, nem acaba com a urna eletrônica em si. O que se quer é criar a obrigatoriedade da impressão do voto para que ele seja checado pelo eleitor, sem que haja contato com o papel (e possíveis recontagens depois). Evidentemente, esse retrocesso será suficiente para alimentar todo tipo de fake news e teorias conspiratórias.
Um dos debates mais importantes sobre o tema até agora contou com a presença na quarta 9 do ministro do STF e presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, que luta para tentar evitar tal cenário. Depois de fazer uma explanação paciente sobre as virtudes e provas de confiabilidade das urnas eletrônicas, Barroso debateu com os parlamentares o assunto e garantiu que, caso fosse o desejo do Congresso de ignorar os alertas e levar adiante a ideia, fará o possível para implementá-la em 2022. “A vida vai ficar bem pior, vai ficar parecido com o que era antes”, alertou o ministro, que já classificou a história como equivalente a um desejo pelo retorno dos orelhões ao país — algo impensável no tempo dos celulares. Se a aprovação for inevitável, o TSE defende a tese de que ao menos a lei preveja um prazo exequível para a sua aplicação.
Dias antes de ir até a comissão, Barroso começou a marcar reuniões com quem manda efetivamente nas bancadas do Congresso: os presidentes dos partidos. Nas últimas três semanas, o ministro esteve com Bruno Araújo (PSDB), Baleia Rossi (MDB), Gilberto Kassab (PSD), ACM Neto (DEM) e Renata Abreu (Podemos) para falar sobre o voto impresso. Também conversou com Arthur Lira, presidente e, portanto, dono da pauta da Câmara. Nessas audiências, Barroso mais ouve do que fala, mas, quando fala, faz uma ampla defesa do atual sistema de votação. Argumenta por que considera a urna segura e lista os riscos da obrigatoriedade do voto impresso. Barroso evita, entretanto, pedir explicitamente que o interlocutor oriente seus parlamentares a derrubarem o projeto. Apesar do esforço, o ministro já esteve mais otimista. No TSE, aposta-se que o projeto vai passar na Câmara. Foi sob a gestão de Lira, aliás, que o assunto ganhou fôlego. Um agrado a Bolsonaro, que tanto apoio deu à eleição do alagoano. Em uma das andanças do presidente em tempos de pandemia, Lira defendeu a proposta e foi chamado de “pai do voto impresso” pelo capitão durante um evento. Bia Kicis foi citada como “mãe” (bem ao seu estilo, ela contratou uma empresa que divulgou fake news sobre a urna eletrônica, conforme revelou reportagem de O Globo).
A despeito das desconfianças insufladas a plenos pulmões pelos bolsonaristas, a urna eletrônica mostrou-se completamente segura ao longo de mais de duas décadas. Tudo porque foi projetada para ser um dispositivo isolado, sem conexão com a internet, bluetooth ou qualquer tipo de rede, inibindo ataques externos. São trinta camadas de segurança que protegem os sistemas de tentativas de invasão. Ainda assim, o TSE realiza testes públicos de segurança, em que grupos tentam violar a urna. Foram mais de cinquenta planos de ataque e quase nenhuma vulnerabilidade foi detectada. Os próprios partidos políticos têm deixado de acompanhar algumas conferências e auditorias, de tanta fé que já têm no processo. Entre a população, o dispositivo merece a confiança de 73% dos eleitores, segundo pesquisa do Datafolha de janeiro. “É impossível haver um complô envolvendo todas as autoridades que cuidam do processo”, diz o deputado federal Arlindo Chinaglia (PT-SP), que integra a comissão da PEC.
A confiabilidade do sistema, aliás, recebeu aval internacional. Antes de deixar o comando do TSE, no início de 2018, o ministro Gilmar Mendes fez um acordo com a Organização dos Estados Americanos (OEA) para que, de forma independente, houvesse uma fiscalização do pleito no país naquele ano. Comandada por Laura Chinchilla, ex-presidente da Costa Rica, uma comissão veio ao Brasil para essa finalidade. Ao final, fizeram um relatório de 113 páginas em que analisaram — e elogiaram — o sistema eleitoral brasileiro. “Falaram sobre reparos em questões organizacionais, mas nada sobre o sistema de votação”, lembra Gilmar Mendes. Se não bastasse, um teste com a impressão de votos foi feito em 2002 com 7 128 233 eleitores de 150 municípios. Em vez de um processo mais seguro, o que se viu foi justamente o contrário. Um relatório elaborado pelo TSE mostrou que os trabalhos foram dificultados pelo desconhecimento de eleitores e de mesários quanto ao mecanismo e houve falha das impressoras.
Nada disso é levado em conta pelos membros da comissão da Câmara favoráveis ao voto impresso. “A autoridade eleitoral no Brasil opera o sistema, compra os computadores, faz o software, é normatizadora e estabelece através de resoluções o que pode ser auditado e o que não pode. Há muito abuso de poder e falta de transparência”, critica o engenheiro Amílcar Brunazo Filho, especializado em segurança de dados, um dos que foram chamados pela comissão, embora ele mesmo não faça acusações sobre fraudes. Nos próximos dias, será ouvido um variado leque de depoentes pelos membros da comissão, que é integrada também pelo deputado federal Aécio Neves (PSDB-MG), um dos que são a favor da ideia do voto impresso. Coincidentemente, partiu dele a última solicitação de auditoria de resultado, quando o tucano mineiro acabou derrotado em 2014 por Dilma Rousseff (PT) na corrida presidencial. Nenhuma fraude foi encontrada. Entre a turma bolsonarista, Otoni de Paula (PSC-RJ) conseguiu aprovar o depoimento do ex-delegado Protógenes Queiroz, o mesmo que comandou a atrapalhada Operação Satiagraha. O ex-delegado, atribuiu sua derrota em 2014 para a Câmara dos Deputados pelo PCdoB a uma fraude. Mas nunca provou nada. Outro convite aprovado, dessa vez a pedido de Bia Kicis, é para ouvir o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB).
Os convites a Dino e Protógenes buscam fomentar a argumentação de que a contestação da segurança do processo eleitoral não é um tema importante apenas para a direita. De fato, foi por muito tempo — e ainda é — uma pauta de siglas de outros matizes, como o PDT, por herança do ex-governador Leonel Brizola, um crítico da urna eletrônica. O atual presidente da sigla, Carlos Lupi, veio a público defender a medida e ganhou o desprezo de eleitores progressistas emburrados com o fato de ele engrossar o caldo bolsonarista. Presidenciável do partido, Ciro Gomes também saiu em defesa do voto impresso, mas vem fazendo um esforço — sem sucesso — para separar esse apoio da pregação bolsonarista. Em 2009, os pedetistas conseguiram incluir nas mudanças eleitorais uma emenda que previa auditoria independente do software mediante o sorteio de 2% das urnas eletrônicas de cada zona eleitoral. Os votos impressos nesses dispositivos seriam contados e comparados com os resultados apresentados pelo respectivo boletim de urna. O então deputado Flávio Dino era o relator, incorporou a emenda e, por isso, foi um dos chamados a falar na atual comissão. A norma foi posteriormente declarada inconstitucional.
Embora venha disfarçada com argumentos técnicos, a manobra bolsonarista para trazer o tema de volta é claramente uma estratégia política. “Eles retomam essa discussão para se reagrupar e manter ações para reforçar sua base fiel”, diz Monalisa Lopes, do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia, da Universidade Federal do Ceará. Dessa forma, segundo ela, o bolsonarismo mantém o séquito mobilizado e, de quebra, ainda desvia o foco de assuntos espinhosos — da rachadinha de Flávio Bolsonaro à CPI da Covid. Entretanto, o intento principal é pôr em xeque uma possível derrota em 2022. “Isso é muito ruim para a democracia porque lança dúvidas sobre procedimentos consagrados. Agora que vai enfrentar um processo eleitoral mais duro, o presidente volta com essa discussão”, critica o cientista político Fábio Vasconcellos, professor da Uerj e da ESPM-RJ.
Como já fez em inúmeras outras ocasiões, a ação de Bolsonaro emula o exemplo dado por seu ídolo político, Donald Trump. O republicano começou a lançar dúvidas sobre o processo eleitoral nos Estados Unidos muito antes de sua derrota para Joe Biden. A chocante invasão de bárbaros ao Capitólio, no começo do ano, foi fruto direto dessa pregação e não é absurdo imaginar que algo parecido possa acontecer por aqui no caso de uma vitória apertada da oposição em 2022. “Nos Estados Unidos, há voto impresso e isso não impediu a alegação de fraude, inclusive por parte das pessoas que o defendem no Brasil”, lembra Luís Roberto Barroso.
Serve como sinal de alerta o fato de que a narrativa de desconstrução do modelo atual já incendeia as redes sociais. Em estudo recente, a FGV mostrou que 2018, ano da eleição de Bolsonaro, foi o período que mais registrou postagens e links sobre a suposta existência de fraudes nas urnas, superando discussões sobre “kit gay” e “ideologia de gênero”, fortes na redoma conservadora. Na luta contra a boataria, o TSE fez parceria com agências de checagem e envolveu até clubes de futebol na campanha.
Esse cenário de injustificada descrença no sistema eleitoral contrasta com a época do voto manual, em que manipulações grosseiras e suspeitas de fraudes eram comuns, a ponto de chegarem a anular eleições no Rio de Janeiro, em 1994, e em Alagoas, em 1990. Foram episódios como esses que levaram o Brasil a evoluir ao modelo eletrônico, hoje adotado por quase cinquenta nações em pleitos gerais ou regionais, entre elas Canadá, Índia e França. “Há ainda poucos países que usam a tecnologia eletrônica para votação porque não vivenciaram, como o Brasil já vivenciou, episódios de fraudes”, afirma Eduardo Damian, presidente da Comissão de Direito Eleitoral da Ordem dos Advogados do Brasil. O mundo continua progredindo e a votação por urna eletrônica deixou de ser o que se tem de mais moderno. A Estônia já implementou o voto por meio do celular, possível graças a uma identidade digital única para cada cidadão. Alemanha, Canadá e França estão em discussão sobre o tema. Enquanto outras nações do mundo avançam em mecanismos digitais para a escolha de seus candidatos e fortalecem a democracia, o Brasil vê Bolsonaro em campanha para voltar ao passado. Com isso, ele cria tumulto político e prega o retrocesso eleitoral. O país não precisa ser assombrado pelos fantasmas que ficaram para trás.
Com reportagem de Gabriel Mascarenhas, Edoardo Ghirotto e Caíque Alencar
Publicado em VEJA de 16 de junho de 2021, edição nº 2742