Na noite de 26 de janeiro, o pastor André Valadão, que tem mais de 10 milhões de seguidores nas redes sociais, convidou o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) ao púlpito de sua igreja evangélica em Orlando, nos Estados Unidos. Em frente a um telão com uma foto do parlamentar, os dois lamentaram a morte do escritor e guru bolsonarista Olavo de Carvalho, ocorrida no início daquela semana. Um dos principais responsáveis pela articulação do presidente da República com o eleitorado conservador, o Zero Três falou durante uma hora e meia aos presentes. Na pregação, declarou que nenhum cristão pode ser socialista, associou o PT às ditaduras de Cuba, Coreia do Norte e Venezuela e, ecoando as teses preconceituosas de seu pai, afirmou que os homossexuais são massa de manobra da esquerda para atacar a família tradicional. Apesar do discurso político, Eduardo tentou posar de desinteressado. “Poxa, vou lá na igreja, será que o pessoal vai ficar achando ‘olha lá, é mais um político aproveitador que vai querer enganar a população?’. Mas a gente está aqui a uns bons milhares de quilômetros do local onde as pessoas votam em mim”, declarou.
De fato, Eduardo, eleito em 2018 pelo estado de São Paulo, estava distante de quem pode votar nele — apenas fisicamente, já que o culto foi transmitido ao vivo pela internet. Mas sua participação ali não foi em benefício próprio, e sim parte do projeto de reeleição de Jair Bolsonaro. No exterior, Eduardo comandou uma espécie de evento-teste, o treinamento de uma estratégia que será colocada em prática para garimpar votos em igrejas católicas e templos evangélicos durante a eleição de 2022. O plano do clã presidencial está desenhado e se divide em duas etapas. A primeira delas prevê a aprovação no Congresso de um projeto que promove um “liberou quase que geral” de campanhas dentro de igrejas e templos, ao assegurar aos candidatos o direito de comparecer a esses locais, usar a palavra e exibir vídeos de suas ideias, ficando proibidos apenas de pedir votos — de forma direta — a eles próprios. Um texto nesse sentido foi aprovado pela Câmara dos Deputados em setembro passado e deve ser votado em breve no Senado. Quando for sancionado, Bolsonaro e seus aliados pretendem deflagrar a segunda etapa do plano: comparecer principalmente a cultos evangélicos, pregar durante os eventos e, quando isso não for possível, apresentar vídeos aos fiéis com mensagens parecidas às difundidas por Eduardo em Orlando.
Aliada a Bolsonaro, a Igreja Universal do Reino de Deus já deu provas de que está comprometida com a empreitada e, no último dia 23, publicou um texto em seu site no qual afirma que “é impossível ser cristão e ser de esquerda”. A aposta prioritária do presidente nos evangélicos tem razão de ser. O grupo foi fundamental para sua vitória em 2018, forma uma das principais bases de apoio a seu governo, tem uma bancada com mais de oitenta deputados federais e cresce na comparação com os católicos. Segundo o Datafolha, 31% dos eleitores são evangélicos. De acordo com o Censo, em 1980 apenas 6,6% da população se identificava com a religião. “Em outras eleições, o PT foi bem entre os evangélicos. Mas em 2018 cerca de 70% dos evangélicos votaram em Bolsonaro, o que equivale à diferença de 11 milhões de votos que garantiu a vitória dele no segundo turno”, diz o demógrafo José Eustáquio Alves, professor aposentado do IBGE. “As pesquisas de agora mostram um retorno ao passado. Isso de dizer que o voto evangélico está com Bolsonaro não é mais verdade”, acrescenta. O Datafolha corrobora essa análise ao mostrar que, em eventual segundo turno, 46% dos evangélicos optariam pelo ex-presidente Lula (PT) e 44% por Bolsonaro.
Caso tenha liberdade para fazer campanha nos templos, o presidente acha que pode reverter essa situação. Por isso, a aposta na mudança na legislação, que foi proposta sob a alegação de defender a liberdade de expressão. Hoje, com base nas regras em vigor, é comum adversários pedirem à Justiça Eleitoral punição a um determinado candidato quando ele participa de uma missa e divulga mensagens aos presentes. Em 2020, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tratou do tema ao analisar o caso da pastora Valdirene Tavares dos Santos, então vereadora do município de Luziânia (GO). Num discurso nas dependências de uma unidade da Assembleia de Deus, Valdirene discorreu sobre sua atuação na Câmara Municipal para cerca de quarenta jovens de 16 a 18 anos. Ela disse que travava uma “guerra espiritual tremenda naquele lugar” e pediu ajuda para continuar em sua missão. O Tribunal Regional Eleitoral de Goiás cassou a pastora e a declarou inelegível por “abuso de poder religioso”. Valdirene, então, recorreu ao TSE, que anulou a cassação do mandato por unanimidade.
Na ocasião, mesmo sem ver provas contra a pastora, o relator do caso, ministro Edson Fachin, tentou emplacar uma tese que, se fosse aceita, puniria o abuso de poder religioso dali para a frente — e restringiria as campanhas em igrejas e templos. “A imposição de limites às atividades eclesiásticas representa uma medida necessária à proteção da liberdade de voto e da própria legitimidade do processo eleitoral, dada a ascendência incorporada pelos expoentes das igrejas em setores específicos da comunidade”, disse o ministro, que assume o comando do TSE no fim de fevereiro. Na prática, o projeto aprovado pela Câmara e à espera de votação no Senado tenta fechar as portas para qualquer interpretação na linha defendida por Fachin. A pretendida liberação de campanha eleitoral nas igrejas está embutida no projeto do novo Código Eleitoral, composto de 898 artigos que tratam de assuntos diversos, como a previsão de quarentena para juízes e policiais que queiram se aventurar nas urnas. A relatora na Câmara foi a deputada Margarete Coelho (PP-PI), colega de partido do presidente da Casa, Arthur Lira, e do ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, ambos entusiastas da reeleição de Bolsonaro.
Em seu relatório, Margarete também estipulou que sejam regidas pelas novas regras as universidades, onde o debate político e eleitoral já ocorre praticamente sem amarras. “O fato de um candidato entrar em uma igreja, ir à missa, comungar e até fazer a oração não é por si só abuso de poder. Existem centenas de ações judiciais no Brasil sobre isso. O que a gente está querendo é estancar essa sangria”, afirma a deputada. Já o especialista em direito eleitoral Luiz Eduardo Peccinin — autor do livro O Discurso Religioso na Política Brasileira: Democracia e Liberdade Religiosa no Estado Laico — prevê mais confusão pela frente. “O projeto de lei dá um pretenso salvo-conduto para que o púlpito seja utilizado para fazer campanha eleitoral. É importante lembrar que o mesmo se aplica às universidades. Ainda que a preocupação com a censura seja legítima, a inclusão do dispositivo pode gerar mais confusão do que segurança, já que certamente a Justiça Eleitoral não deixará de agir nos casos concretos de abuso nessas situações.” Os candidatos, obviamente, estão mais preocupados em fazer campanha do que em debater sobre a devida aplicação do direito. E todos pretendem aproveitar a oportunidade de disputar votos em missas e cultos.
Líder das pesquisas de intenção de voto, o ex-presidente Lula, por exemplo, alega que os evangélicos não são um grupo unificado politicamente, o que tiraria de Bolsonaro a chance de ter o apoio de todas as lideranças do setor. O petista também acha que pode ganhar votos nesse segmento se — ao contrário do rival, que aposta no discurso conservador — falar sobre como melhorar a vida das pessoas, trabalhar com lideranças locais e focar na base evangélica de baixa renda. “Boa parte dos filiados e militantes do PT é evangélica e isso já cria várias pontes para o diálogo. Além disso, o maior fator de reaproximação da base evangélica e também de muitos pastores com Lula é a realidade social que nossos irmãos e irmãs estão passando. Para o povo que sofre calado, basta comparar a situação atual com sua vida durante o governo de Lula”, diz a deputada Benedita da Silva (PT-RJ). Em terceiro lugar nas pesquisas, Sergio Moro (Podemos) também tenta se aproximar desse grupo de eleitores e no dia 7 de fevereiro lançará uma carta de “princípios cristãos”. Enquanto candidatos e alguns líderes evangélicos negociam alianças eleitorais, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil mantém, até agora, distância regulamentar da disputa. A VEJA, a CNBB disse apenas que discute a elaboração de orientações para as eleições deste ano. Por maior que seja a tentação, nem todos estão dispostos a explorar a fé alheia na busca de votos.
Publicado em VEJA de 9 de fevereiro de 2022, edição nº 2775