Dia sim, no outro também, o noticiário no Brasil é inundado pela possibilidade de um golpe orquestrado pelo presidente Jair Bolsonaro. O roteiro é mais ou menos semelhante. De modo irresponsável, o presidente diz barbaridades ou articula movimentos que afrontam o estado democrático de direito. Representantes da sociedade civil e de outros poderes reagem contra a investida, a turma do deixa-disso intervém, Bolsonaro recua, diz que não é nada disso, e a situação se normaliza. Até que… como se nada tivesse dito, ele reinicia o processo. Com esse comportamento ciclotímico, a atual cena política brasileira faz lembrar a trama do filme Feitiço do Tempo, de 1993, em que o pior dia do protagonista, interpretado por Bill Murray, se repetia indefinidamente. Enquanto o presidente se dedica ao seu universo fantasioso, os problemas reais do país — pandemia, desemprego e alta carga tributária, para citar apenas alguns — continuam contabilizando vítimas e prejuízos.
Nesta semana, o clímax dessa desagradável sequência ganhou ares de superprodução com o desnecessário desfile de tanques pelas ruas de Brasília. A suposta demonstração de força — caracterizada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, como uma “trágica coincidência” — aconteceu exatamente no dia da votação sobre o voto impresso, obsessão bolsonarista, que acabou fragorosamente derrotada no Congresso. Evidentemente, o enredo terminou como o usual, com as reações de praxe ao descalabro presidencial e a certeza de que o país não sofrerá um novo golpe. Mas sabemos também que novas ameaças à democracia, de forma direta ou indireta, serão realizadas em breve. Essa é a maneira pela qual Bolsonaro escolheu se posicionar até a eleição de 2022, uma mistura de estratégia para mobilizar sua base mais radical com a influência que recebe de pessoas que alimentam seus delírios autoritários e teorias conspiratórias (veja reportagem sobre os assessores Mosart Aragão e Max Guilherme, que começa na pág. 40). É uma lástima.
Felizmente, o Brasil não é mais a república das bananas que certas mentes deturpadas e limítrofes acreditam ser. Embora a imagem do país no exterior esteja péssima em razão dessas trapalhadas, nossas instituições têm demonstrado profunda resiliência às instabilidades provocadas e um grau de maturidade histórico — tanto no Poder Legislativo quanto no Judiciário. No Supremo Tribunal Federal, conhecido pelas enormes divergências em relação a diversos temas, existe uma reprovação total ao comportamento do presidente e seus asseclas. Nessa toada, tem papel de destaque o ministro Alexandre de Moraes, que concentra as principais investigações criminais contra Bolsonaro e aliados: fake news, atos antidemocráticos e interferência na Polícia Federal. Como mostra a reportagem que começa na página 26, Moraes hoje é a principal muralha contra os arroubos exacerbados do presidente e tornou-se um elo de coesão entre as diversas alas do STF. Ainda que suas decisões muitas vezes sejam consideradas heterodoxas na visão de alguns de seus pares, sua atuação hoje é a garantia de que esse repetitivo e desagradável roteiro — que contraria a Constituição — terá, pelo menos, um final feliz.
Publicado em VEJA de 18 de agosto de 2021, edição nº 2751