Carta ao Leitor: Para além da ideologia
Na diplomacia, espera-se que Lula faça o que dele se espera: defenda os interesses econômicos do Brasil acima das questões políticas
Ao longo de cinco décadas de existência, VEJA sempre manteve um olhar atento em torno das chacoalhadas pelas quais atravessou o planeta. Reportagens de envergadura ajudaram a lançar luz sobre a redefinição de fronteiras, o desdobramento de conflitos e as mudanças de forças no tabuleiro mundial, ressaltando o papel do Brasil em um mapa-múndi cada vez mais complexo. Na extensa história de coberturas da revista, destacam-se, entre outras, a da Guerra do Golfo e a do desmonte da União Soviética, no início dos anos 1990, e a da nova revolução de comportamento e política da China, no início dos anos 2000, quando o país começava a pôr suas afiadas garras de fora com o objetivo de ultrapassar os Estados Unidos como a maior de todas as potências — tema que rendeu uma matéria especial conduzida por cinco jornalistas em campo durante quase um mês.
Na segunda-feira 23, o presidente Lula fez a primeira incursão internacional desta sua terceira temporada no poder com uma viagem à Argentina, trajeto inaugural que outros presidentes já percorreram em sua estreia, até por se tratar do principal parceiro do Brasil na região. Para acompanhar de perto um evento de relevância, a reunião de cúpula da Celac (Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos), VEJA enviou a Buenos Aires o repórter Caio Saad. “Lula foi uma espécie de superstar do encontro, o centro das atenções”, relata Saad, que também entrevistou o presidente esquerdista Alberto Fernández. Depois de Buenos Aires, Lula foi ainda ao Uruguai de Luis Alberto Lacalle Pou, presidente de centro-direita.
Nessa viagem internacional, Lula deu o primeiro passo a caminho de ocupar a liderança, que está vaga e que acha que lhe cabe, nos rumos da América Latina, uma região na qual hoje a esquerda — embora multifacetada e com distintos propósitos — se espalhou com sucessivas vitórias eleitorais. Trata-se de uma atitude semelhante à adotada em seus dois mandatos anteriores, quando enveredou por uma trilha de intenso conteúdo ideológico, alinhada com a chamada Cooperação Sul-Sul. Seguindo essa estrada (de forte cunho simbólico, mas pouco pragmático), o governo brasileiro enfatizou os laços não somente com as nações vizinhas, mas também com países da África. Alinhou-se, sem contrapartida alguma, com o cubano Fidel Castro (1926-2016), com quem esteve em cinco ocasiões oficiais e a quem homenageou ao comparecer a seu enterro, e estabeleceu um elo especialmente firme — e desnecessário — com o venezuelano Hugo Chávez (1954-2013). O problema que não é detalhe: ambos, Castro e Chávez, maltrataram a democracia, e o mínimo que se esperava seria um olhar crítico, que nunca houve.
A ideologia, portanto, pautou muitas das decisões do presidente nas encarnações anteriores. Agora, espera-se que Lula III consiga deixar os matizes comezinhos de lado — e que faça o que dele se espera, e que Jair Bolsonaro também não soube fazer: que defenda os interesses econômicos do Brasil acima das questões políticas. A diplomacia, cujas raízes estão fincadas na era das luzes do Renascimento italiano, é a arte de defender um país na forma de um discurso coeso e fundamentalmente sensato, trazendo oportunidades e abrindo mercados para suas empresas e cidadãos. Chances para desempenhar tal papel, ele terá. Na agenda de Lula, depois da confraternização latino-americana, está planejada uma viagem aos Estados Unidos de Joe Biden, em fevereiro, seguida de outra à China de Xi Jinping, provavelmente em março. O mundo mudou desde que Lula se elegeu pela primeira vez, em 2002 — é essencial que ele também mude, de mãos dadas com o andar da história.
Publicado em VEJA de 1º de fevereiro de 2023, edição nº 2826