Abin paralela e caso das joias complicam planos eleitorais bolsonaristas
Entre aliados, a preocupação com o impacto político das investigações da PF se justifica porque Bolsonaro é o principal cabo eleitoral da direita
Na quinta 4, logo que começaram a surgir as primeiras notícias sobre o indiciamento de Jair Bolsonaro pela Polícia Federal no caso das joias sauditas, o vereador Carlos Bolsonaro (PL-RJ), que cuida das redes sociais do ex-presidente e atua como uma espécie de pit bull contra quem tenta se aproveitar do capital eleitoral do pai, deu o primeiro recado. “Por que a tal direita sensata não dá um pio? As variantes de ação para uma hora encaixar continuam a todo vapor”, escreveu em tom de repreensão. Nos dias seguintes, ele voltaria ao tema, citando um suposto “happy hour da direita” e cobrando os “isentões” e a “direita limpinha”, que estariam “somente querendo o espólio político de Jair Bolsonaro” ou fazendo de “tudo para criar esqueletos e se colocarem como bonzões”. As mensagens (meio cifradas, como é comum no linguajar “carluxês”) tinham endereço: aqueles que viram na cada vez mais enroscada situação policial e judicial do ex-presidente uma oportunidade eleitoral — ou um sinal de alerta.
A tensão piorou bastante na quinta 11, quando uma operação da PF prendeu quatro pessoas acusadas de integrarem a chamada Abin paralela, um esquema clandestino de arapongagem que teria operado durante o seu governo, utilizando as estruturas da Agência Brasileira de Inteligência, e monitorado de forma ilegal e com finalidade política e pessoal ao menos 22 pessoas, entre ministros do Supremo Tribunal Federal — como Luís Roberto Barroso, atual presidente da Corte, e Alexandre de Moraes, relator da maioria dos casos envolvendo Bolsonaro —, além de jornalistas e parlamentares, como o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Entre os presos estavam dois delegados diretamente subordinados ao então chefe do órgão, Alexandre Ramagem, hoje deputado federal pelo PL e pré-candidato a prefeito do Rio de Janeiro com as bençãos do clã Bolsonaro. A investigação revelou um áudio no qual Bolsonaro, Ramagem e o general Augusto Heleno (então chefe do GSI) discutiam um plano para monitorar e tentar comprometer três auditores da Receita Federal que teriam contribuído na apuração da prática de rachadinha pelo senador Flávio Bolsonaro (PL), quando era deputado estadual no Rio de Janeiro.
A preocupação com o impacto político das investigações sobre Bolsonaro se justifica porque há uma coisa sobre a qual ninguém tem dúvida. Ele é o principal cabo eleitoral da direita. A insegurança que bateu em alguns partidos que fazem gravitar os seus projetos para 2024 e 2026 na órbita do bolsonarismo tem a ver com uma questão: o quanto o agravamento da situação de Bolsonaro pode descapitalizar seu cacife político. E pior: deixá-lo tóxico para eventuais companheiros de jornada. A expectativa é de que, até o final desta corrida eleitoral, ele tenha sido indiciado em todos os principais inquéritos de que é alvo. Já foi assim no caso da falsificação do cartão de vacinação — mas o procurador-geral da República, Paulo Gonet, pediu investigações adicionais — e agora no caso da venda de joias e outros presentes recebidos em viagens oficiais, que, na visão da PF, deveriam ter sido incorporados ao patrimônio público. Também são esperados indiciamentos ao menos nas apurações sobre a Abin paralela e a tentativa de golpe de Estado.
Uma das dúvidas mais imediatas é sobre como isso vai influenciar as eleições daqui a menos de três meses. Uma certeza é de que as complicações envolvendo o principal nome da direita serão exploradas pela oposição. Apesar da esperança de que os apoiadores fiéis sejam imunes a isso, até correligionários avaliam como delicada a situação do ex-presidente como cabo eleitoral. Desde o início do ano, Bolsonaro visitou dezenas de cidades como parte do objetivo do presidente do PL, Valdemar Costa Neto, de impulsionar candidaturas e bater o recorde de prefeitos eleitos. “O apoio a Bolsonaro enquanto figura nacional é uma coisa. Nos estados é que isso se complica, porque, para um candidato a prefeito ganhar a eleição, por mais que ele levante a bandeira do bolsonarismo, não adianta ficar pregando para convertido”, diz um importante aliado. Um dos temores é que, a despeito de Bolsonaro já ter passado por todo tipo de acusação — de omissão na pandemia a tentativa de golpe —, o caso das joias tenha potencial maior para afetar sua imagem. “É muito mais fácil colar a ideia de que ele é ladrão ou corrupto do que golpista”, diz Eduardo Grin, cientista político da FGV-SP.
Em cidades importantes onde a disputa está acirrada, candidatos apoiados por Bolsonaro já vêm tentando se equilibrar entre uma aproximação segura, para atrair seus votos, e uma distância saudável, para não correr o risco de contaminação. O prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), é o maior exemplo. O emedebista, que desde o final de 2023 vinha adotando uma atitude dúbia, teve de engolir a seco o nome indicado pelo ex-presidente para vice, o coronel da PM Ricardo Mello Araújo, quando viu a possibilidade de o eleitor à direita ir para o coach Pablo Marçal (PRTB). Nunes, que ainda não fez nenhuma aparição pública de pré-campanha com Bolsonaro, já experimentou um pouco do que acontecerá daqui para a frente. Na cerimônia alusiva à Revolução Constitucionalista em São Paulo, ele foi questionado sobre o indiciamento. Citou outros casos em que o ex-presidente foi investigado e acabou inocentado e pediu “responsabilidade” com a investigação. Ato contínuo, a campanha de Guilherme Boulos (PSOL) disparou uma crítica à fala e reiterou a estratégia de colar nele a imagem de bolsonarista que tenta minimizar o desvio de joias.
O plano se sustenta em pesquisas recentes que dão tração à preocupação com Bolsonaro. Segundo o Datafolha, 65% dos paulistanos não votariam em um candidato apoiado por ele, enquanto 32% dizem que votariam ou poderiam votar. A performance como cabo eleitoral se repete no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte, Fortaleza e Salvador (veja o quadro). O risco é crescer a resistência a ele no eleitorado menos fiel à medida que forem avolumando as acusações. “A infinidade de provas sendo revelada pelas investigações é algo fácil de ser assimilado pelo eleitor fora da bolha. O político pragmático sabe que não pode defender certas coisas, e isso com certeza vai ter um impacto nas campanhas”, diz um aliado.
Há outros apoiadores de Bolsonaro ainda mais preocupados do que Nunes. É o caso de Alexandre Ramagem, que, nas primeiras horas após o indiciamento do seu padrinho, gravou um vídeo de onze minutos para minimizar as acusações, criticar a PF e, argumento comum entre bolsonaristas, dizer que Lula não teve o mesmo tratamento. Segundo o Datafolha, ele tem 7% das intenções de voto contra 9% de Tarcísio Motta (PSOL) e 53% do prefeito Eduardo Paes (PSD). Ou seja, sem Bolsonaro, pode não ir nem ao segundo turno. A operação da PF sobre a Abin paralela piorou bastante a situação de Ramagem, que havia preparado para a próxima semana (18 a 20) uma série de atos de rua ao lado de Bolsonaro para tentar melhorar a sua posição na corrida eleitoral. Agora, com ele e o cabo eleitoral chamuscados, não se sabe se a programação será mantida.
Ramagem vive uma situação mais delicada, claro, mas não é o único que depende de Bolsonaro para ser viável eleitoralmente. Outros pré-candidatos vivem situação parecida, como André Fernandes (Fortaleza) e Bruno Engler (Belo Horizonte), ambos do PL. “Ele é o meu principal cabo eleitoral, o grande líder da direita. Esse caso das joias não afeta em nada porque todo mundo com mais de dois neurônios percebe que é perseguição”, afirma Engler. Já outros postulantes em situação mais confortável nas pesquisas evitam apoiar-se em Bolsonaro. Em Maceió, única capital do Nordeste em que o capitão venceu Lula, o prefeito João Henrique Caldas, mesmo tendo migrado para o PL, tem preferido temas ligados a sua gestão. Com 54,4%, segundo o Paraná Pesquisas, ele tem 40 pontos de distância para o segundo colocado. Em Salvador, Bruno Reis (União Brasil) exaltou o PL como “o maior partido do Brasil” ao receber o apoio da sigla, mas evita citar Bolsonaro em seus discursos. Com 64%, segundo o Paraná Pesquisas, ele está 53 pontos à frente de Geraldo Júnior (MDB), o candidato apoiado pelo petismo. A preocupação se justifica. Em 2022, Lula obteve 70% dos votos na capital baiana, enquanto Bolsonaro não chegou a 30%.
Há também uma grande inquietação com 2026 e a definição de quem terá condições de representar a direita no embate com Lula. Alguns pré-candidatos já têm seus nomes circulando, como os governadores Tarcísio de Freitas (São Paulo) — o mais forte —, Ronaldo Caiado (Goiás) — o primeiro a se dizer presidenciável —, Ratinho Junior (Paraná) e Romeu Zema (Minas Gerais), nenhum deles filiado ao PL. Apesar de em público todos dizerem que o “plano A” segue sendo Bolsonaro, por ora inelegível, as conversas sobre alternativas já ocorrem desde o ano passado.
Um desafio para qualquer nome é se beneficiar da transferência de votos. Na eleição de 2018, Lula mostrou-se capaz de fazer isso ao fingir ser candidato e ceder o lugar a Fernando Haddad a menos de um mês da votação — o hoje ministro foi ao segundo turno e teve 45% dos votos. Lula já havia feito algo parecido com Dilma Rousseff, que chegou à Presidência sem ter disputado antes nenhuma eleição. Outro célebre transferidor de votos foi Leonel Brizola. No episódio mais conhecido, ele praticamente fez todos os seus eleitores no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro, estados que governou, votarem em Lula no segundo turno de 1989. Brizola também emplacou dois governadores aliados no Rio: Marcello Alencar e Anthony Garotinho. Outros casos de sucesso foram Luiz Antonio Fleury Filho, sucessor de Orestes Quércia no governo paulista, e Celso Pitta, que sucedeu Paulo Maluf na prefeitura de São Paulo — ambos nunca tinham disputado nada. Bolsonaro já mostrou que tem condições de fazer isso ao tirar da cartola, em 2022, o nome de Tarcísio e fazê-lo governador do maior estado do país. Entre os nomes especulados para liderar a direita em 2026, o único que não tem experiência eleitoral é a primeira-dama Michelle Bolsonaro.
Outro complicador para o ex-presidente no seu inferno astral é o desempenho de Lula, que viu a avaliação de seu governo melhorar em pesquisas do Ipec e da Genial/Quaest divulgadas na última semana. O petista, porém, não tem sido um grande cabo eleitoral — segundo o Datafolha, metade do eleitorado rejeita um candidato apoiado por ele, em São Paulo, Rio e Belo Horizonte. O presidente é abraçado com ênfase por Boulos e com alguma discrição por Paes — em parte, porque 42% dos eleitores do prefeito do Rio votaram em Bolsonaro em 2022. Enquanto o candidato do PSOL intensifica a agenda com ministros e deu a vaga de vice à ex-prefeita Marta Suplicy (PT), Paes adota uma postura mais cuidadosa e nem pensa em ter um petista na sua chapa à reeleição.
A ordem no entorno mais próximo a Bolsonaro, em especial no PL, é minimizar um provável impacto e ressaltar a resiliência eleitoral do ex-presidente. “Tudo o que veremos no processo eleitoral de agora em diante é a mais pura e repugnante perseguição política. O eleitor está vendo isso”, diz o líder do PL no Senado, Carlos Portinho (PL-RJ). “Não vai dar problema”, acredita outro senador e apoiador de primeira hora, Magno Malta (PL-ES). Mas ele critica parlamentares que não se manifestaram em apoio ao ex-presidente no caso das joias e partidos que se dizem de direita, mas têm cargos no governo. “A gente sabe que 2026 passa por 2024. Portanto, não vamos fortalecer a direita limpinha para eles chegarem fortes para eleger um presidente”, avisa. Outro aliado fiel, o deputado Ricardo Salles (PL-SP) admite que o indiciamento traz algum prejuízo ao ex-presidente. “É uma situação que constrange, mas há muito abuso”, diz. Especialistas apontam, de fato, uma forte consolidação das posições dos eleitores em um cenário extremamente polarizado e consideram que, por isso, o indiciamento pode ter impacto limitado no voto. “Afeta pouco”, afirma o cientista político Antonio Lavareda. Para Rubens Figueiredo, diretor do Cepac, o comportamento dos eleitores bolsonaristas e lulistas se assemelha ao de torcida. “Não muda o voto bolsonarista e ainda pode consolidá-lo mais, porque o eleitor tende a ficar com raiva”, afirma.
De qualquer forma, o burburinho está instalado nos bastidores da direita. Bolsonaro se defende na Justiça e praticamente se cala sobre os casos — só atacou a PF no episódio das joias e nada havia dito sobre a Abin paralela até o final da tarde de quinta. A verbalização do incômodo vem de gente próxima, como o filho Eduardo Bolsonaro (PL-SP), que disse que o “Brasil está afundando” e que “neste caos renascerá o sentimento anti-PT e, com ele, os oportunistas”. “Para não ser enganado, basta ver onde cada um estava em cada batalha travada”, alerta. Fenômeno eleitoral nos últimos anos, Bolsonaro ainda tem muito capital político. Ele brilha no universo político, mas agora como o Sol, do qual convém ficar perto o bastante para se aquecer, mas longe o suficiente para não se queimar.
Publicado em VEJA de 12 de julho de 2024, edição nº 2901