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Woody Allen: ‘A cultura do cancelamento é estúpida e risível’

Aos 86 anos, o americano fala sobre a acusação de assédio que arrasou sua carreira, lamenta o boicote de Hollywood e revela desencanto com o cinema atual

Apresentado por Atualizado em 7 jan 2022, 09h41 - Publicado em 7 jan 2022, 06h00

São muitos os fantasmas que rondam Woody Allen. Hipocondríaco, o cineasta de 86 anos ficou aterrorizado com a pandemia. Além das perdas humanas, a Covid-19 agravou a situação dos cinemas, que já vinham perdendo espaço para o streaming — o que também tira o sono do diretor. Essas preocupações, claro, são ínfimas perto da avalanche advinda do movimento #MeToo, que ressuscitou uma antiga acusação feita por sua ex-mulher Mia Farrow, em 1992, de que o diretor teria abusado da filha adotiva do casal, então com 7 anos. Na época, o cineasta estava se divorciando de Mia, a quem acusa de plantar falsas memórias na criança. Julgado e sentenciado pelo tribunal do cancelamento, Allen, um avesso a entrevistas, notou que precisava falar. Lançou em 2020 um livro de memórias no qual destrincha os pormenores das investigações — todas elas descartaram a acusação. Mesmo assim, Hollywood optou por boicotar Allen. Mas, resiliente, ele não parou de trabalhar. Acaba de chegar aos cinemas seu 49º filme, O Festival do Amor, que celebra os grandes mestres do cinema, mas não tem celebridades no elenco. A VEJA, por telefone, Allen criticou o entretenimento atual, refletiu sobre a morte e atacou a cultura do cancelamento.

O Festival do Amor faz uma viagem pela história do cinema europeu, além de alfinetar produções óbvias embaladas para o Oscar. Por que tal crítica agora? Eu cresci assistindo a filmes de Hollywood. Adorava ir ao cinema e ver na tela atores como Humphrey Bogart, por exemplo. Depois da II Guerra, eu tinha uns 18 anos, as barreiras entre Estados Unidos e Europa diminuíram e um novo mundo cultural se abriu com produções europeias chegando aos cinemas americanos. De repente, as opções não eram apenas filmes de mafiosos, faroestes ou musicais desmiolados: eram filmes que tratavam o espectador como adulto, como alguém capaz de pensar.

Quer dizer que Hollywood faz o contrário, não leva o espectador a pensar sozinho? Não só Hollywood, mas o cinema de hoje. Sou um saudosista do cinema do passado. Foi um período maravilhoso. Meus amigos e eu esperávamos ansiosos pelo próximo filme francês, sueco, italiano que entraria em cartaz. Hoje, os roteiros apostam em soluções falsas, reviravoltas estúpidas e finais que não confrontam o espectador. Claro, ainda existem os cineastas que podem ser chamados de artistas, mas eles estão passando por um momento difícil.

Difícil em que sentido? Filmes são caros de fazer. Um cineasta não consegue realizar sua arte sozinho, como um músico que compra um instrumento e começa a tocar por aí. Ou um escritor que não precisa de muito dinheiro para escrever um livro — apenas o suficiente para não morrer de fome, claro. Já o cinema demanda uma estrutura, uma equipe, e milhões e milhões de dólares. Por isso, um filme se tornou um produto. Se a estimativa de bilheteria não for alta o suficiente, como é o caso dos filmes de arte, é difícil encontrar quem queira investir no seu projeto.

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Essas dificuldades não são tão antigas quanto o cinema de arte? Não, a lógica não era assim nos anos 1960 ou 1970, quando alguns milhões em bilheteria eram suficientes para sustentar uma produção. Mas, quando a indústria de Hollywood descobriu que era possível passar de 1 bilhão de dólares em faturamento, isso mudou tudo. Afinal, por que gastar tempo e dinheiro em uma produção para poucos espectadores, se é possível lucrar alto com outros títulos?

“A cultura do cancelamento é estúpida e risível. Um dia ela vai passar e quem a alimentou vai olhar para trás e ficará envergonhado. Assim como aconteceu com o macarthismo”

A indústria cinematográfica com bilheterias bilionárias é alimentada por filmes de super-heróis. O senhor aceitaria dirigir um filme desse tipo? Eu não assisto a filmes de super-heróis. Por que dirigiria um? Não me interessam. E, mesmo que eu quisesse dirigir um, faria um péssimo trabalho. Não saberia nem por onde começar. Só sei fazer os meus filmes, que são completamente outra coisa.

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Entre as críticas aos longas de heróis está a infantilização do público. Concorda com essa visão pessimista? Sim, as tramas para adultos migraram do cinema para a televisão, ficando sob a responsabilidade de séries e minisséries. Em Nova York, as salas que exibem filmes de arte e estrangeiros estão fechando. Mais de 75% dos cinemas da cidade fecharam. Antes, eu podia atravessar a rua e ser transportado para a Itália, ou para o Brasil, através de um filme. Mas isso hoje é difícil de encontrar, pois não são filmes rentáveis.

Nos últimos anos, impulsionada pelo movimento #MeToo, voltou à tona a suposta acusação de abuso de sua filha Dylan Farrow contra o senhor. Mesmo se tratando de alegações descartadas por investigações, o senhor caiu na malha fina do cancelamento. O que pensa desse momento? A cultura do cancelamento é estúpida e até risível. Um dia ela vai passar e quem a alimentou vai olhar para trás e ficará envergonhado. Assim como aconteceu com o macarthismo, movimento dos anos 1950 que acusava pessoas de subversão e comunismo. Hoje nos envergonhamos ao olhar para o passado sem entender como uma cultura perversa como aquela ganhou tanta força e atingiu milhares de americanos. Um dia, muitas pessoas terão vergonha de terem endossado a era do cancelamento.

Atores famosos que trabalharam em seus filmes disseram estar arrependidos e chegaram a doar seus cachês. Como avalia essa reação e o boicote a seu nome que se instaurou em Hollywood após a acusação de abuso? Penso que eles estejam cometendo um erro. É difícil. Bem difícil. Não sei nem como responder a essa pergunta. Mas acho que eles estão cometendo um erro. Quando entrei em contato com alguns atores para atuarem em O Festival do Amor e eles disseram que não queriam trabalhar comigo, eu contratei outros artistas que toparam. E isso é tudo o que posso fazer agora: dar continuidade ao meu trabalho. Existem diversos atores que aderiram ao boicote, e muitos outros que ainda querem atuar nos meus filmes e é com esses que vou ficar.

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Com tantos dedos apontados para o senhor, chegou a pensar em parar de fazer filmes? Venho pensando em muitas coisas. Sei que posso continuar fazendo filmes, pois existem ótimos profissionais como figurinistas, diretores de fotografia, produtores e muitos atores talentosíssimos que não me condenaram e não veem problema em trabalhar ao meu lado. Mas não sei quantos filmes mais ainda vou fazer. Meu próximo filme será o quinquagésimo. É um número bastante alto. Será que cinquenta são suficientes? Quem sabe?

Para alguém que há cinco décadas faz um filme por ano é difícil imaginar que o senhor queira eventualmente se aposentar. Pensa nisso após completar estes cinquenta filmes no currículo? Sempre achei que faria filmes enquanto eu vivesse, mas vai saber. Especialmente nesse momento em que o tipo de filme que faço fica apenas três semanas em cartaz para, em seguida, ir para o streaming. Ou pior: é lançado na TV e no cinema ao mesmo tempo. Não, eu não quero isso.

Por quê? Sou do tempo em que um filme não era sufocado pelos arrasa-quarteirões e ficava em cartaz nos cinemas por tempo suficiente para crescer no boca a boca e atrair a atenção das pessoas. Isso demora, pois são filmes com verbas pequenas, que não gastam milhões em marketing. É um público que vai ao cinema porque quer, é intencional, não é uma escolha aleatória na TV.

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Mas o senhor é um diretor renomado, uma grife que atrai a atenção. Acha que seu público diminuiu? O que mudou foi a lógica do mercado. Não importa se você é o Steven Spielberg, ou o Martin Scorsese, ou o Woody Allen. Tudo agora vai direto para o streaming. Quando comecei, não era esse o acordo, não era esse o plano. Ficar em casa de pijama, com a família, alguns amigos e ligar a TV é legal, mas esse é outro tipo de experiência. No cinema, você sai de casa, se arruma, entra numa sala com desconhecidos e compartilha emoções, se surpreende, fica até o final. Não pega o controle e interrompe o filme do nada porque, enfim, quer ir ao banheiro ou fazer pipoca. Você organiza sua agenda para se adequar à ida ao cinema, e não o contrário. Eu entendo, ver um filme em plataformas de streaming é mais cômodo e mais barato. Mas, desse jeito, será o fim do cinema como o conhecemos. Então não tenho certeza se quero continuar trabalhando nesse esquema.

Se parar de dirigir filmes, o senhor pensa em fazer o quê? Talvez eu queira, em algum momento, migrar para o teatro. Posso usar minhas habilidades para fazer uma peça ou, quem sabe, escrever livros. Se bem que as pessoas mal leem livros atualmente também. Até os livros estão em extinção, as pessoas agora querem ouvir livros. Dá para acreditar? Duvido que haja algo mais irritante do que ouvir um audiobook em vez de ler um livro de verdade. Por essas e outras razões, é mais provável que eu faça algo para o teatro, onde ainda é possível reunir uma plateia com centenas de pessoas para assistir à mesma história, ao mesmo tempo. É o tipo de experiência que me interessa, que me atrai.

“Eu não assisto a filmes de super-heróis, por que dirigiria um? Não me interessam. E, mesmo que eu quisesse dirigir um, faria um péssimo trabalho. Não saberia nem por onde começar”

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Um dos pontos altos de O Festival do Amor é uma sátira da famosa cena de O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman, em que o protagonista joga xadrez com a Morte. No seu filme, a entidade de preto aconselha o homem a se cuidar mais, comer melhor e a parar de fumar, para adiar aquele encontro no futuro. Seu pavor em relação à morte é bem conhecido. Como está sua visão sobre o tema? Não mudou muito, para dizer a verdade. Obviamente, conforme a gente envelhece, em especial durante uma pandemia, a morte se torna mais presente na mente de todos. Só nos Estados Unidos, a Covid-19 matou quase 1 milhão de pessoas. Mas cada um tem sua perspectiva sobre como lidar com a morte. E achamos que é possível ser racional e intelectual sobre esse assunto.

Por que o senhor vê essas inquietações com ceticismo? Uma pessoa, por exemplo, pode pensar: morrer vai terminar com os problemas da vida, me dará tranquilidade. Outras vão dizer: vou sentir tanta falta deste mundo, das coisas boas da vida, não quero morrer. Há também os que tecem discursos religiosos para falar sobre o fim da vida e o começo de outra. Mas tudo isso não passa da nossa divagação intelectual. O ser humano é biologicamente programado para resistir à morte. Podemos tagarelar quanto for sobre o assunto, mas reagir e manter a espécie viva está no nosso DNA. Então meu falatório, no fim das contas, não serve de nada. Se alguém chega a um lugar com uma arma, você imediatamente tenta se proteger, quer reagir ou fugir. É natural resistir à morte, e eu continuo a fazer isso.

Publicado em VEJA de 12 de janeiro de 2022, edição nº 2771

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