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Silvio Almeida: “Todos os torturadores da ditadura têm que ser julgados”

O ministro dos Direitos Humanos defende a revisão da Lei da Anistia, a descriminalização de certas drogas e diz que o racismo está arraigado no Brasil

Apresentado por Atualizado em 3 fev 2023, 09h52 - Publicado em 2 fev 2023, 11h12

O advogado Silvio Almeida usa a arte e a música como inspiração para sua atuação profissional. Fã de Racionais MC’s, ele lembra que o grupo, referência do rap nacional, já alertava em 1988, ano da promulgação da Constituição, sobre o fato de que os jovens de periferia que eram mortos na ditadura militar continuavam a ser executados no período democrático. O problema continua até hoje e, por isso, combater a violência estatal em suas diferentes formas é uma de suas prioridades à frente do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Outra, de curto prazo, é responder à crise humanitária enfrentada pelos ianomâmis, que, segundo ele, tem as digitais do governo Bolsonaro e elementos que apontam para o crime de genocídio. De fala pausada e reconhecido pelo entusiasmo com o debate teórico, Almeida também demonstra disposição de sobra para “apertar os botões” que promovam mudanças estruturais. Ele defende, por exemplo, a revisão da Lei da Anistia, a punição a torturadores e a descriminalização de algumas drogas, como a maconha, temas que integrantes do governo e do PT evitam abordar por medo das consequências políticas. A seguir, os principais trechos da entrevista.

O governo Bolsonaro cometeu genocídio contra os ianomâmis? Estamos diante de fatos que apontam para a possibilidade de um genocídio. Em tese, ocorreram ações deliberadas para destruir uma comunidade, como deixar crianças morrerem, permitir o avanço de doenças contagiosas e incentivar atividades ilegais que comprometam a existência de um povo. Vários elementos apontam para isso e precisam ser avaliados com cuidado dentro daquilo que determina a Constituição e as leis. Não pode haver erros em uma acusação como essa. Agora, temos uma série de documentos que apontam para uma omissão dolosa, proposital, criminosa, que precisa ser investigada. Não existe genocídio que não seja antecedido por um discurso de ódio.

O senhor pode citar exemplos desses elementos? Indicação para que houvesse a rejeição de um projeto de lei que determinava ajuda emergencial aos indígenas, ignorar denúncias de morte de indígenas, negar proteção aos defensores dos direitos humanos na região, negar-se a responder às cortes internacionais e à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. São elementos que apontam para o genocídio.

A presença do garimpo ilegal em terras indígenas é um problema antigo. Os governos de uma forma geral falharam ao tratar da questão? Esse problema é resultado de uma série de fatores que estão além de um governo, ainda que não possamos esquecer que alguns governos, especialmente o de Jair Bolsonaro, potencializaram fatores que tornam possível o garimpo ilegal. Temos uma trajetória histórica de descaso com os povos indígenas. Há documentos e publicações que demonstram que os indígenas foram vistos pela ditadura como se fossem parte de um problema para a integração do povo brasileiro dentro do nosso território. A tragédia ianomâmi é o resultado desse processo histórico, mas tem, fundamentalmente, as digitais do governo de Bolsonaro.

“O bolsonarismo é um sintoma de uma sociedade que foi paulatinamente construindo uma cultura de normalização da morte, da degradação humana, da cultura do racismo”

Como solucionar o problema? O Estado precisa ocupar aquele território com educação, saúde, assistência social e políticas de emprego e renda. A ausência do Estado é uma ação que leva à morte. É preciso levar o Estado provedor, que consiga cuidar das pessoas e dar as condições para que os povos indígenas continuem a sobreviver. Também é preciso existir uma responsabilidade, tanto no plano nacional como internacional, para interromper os fluxos econômicos que fazem com que certas empresas se sirvam das atividades do garimpo ilegal.

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Em seu discurso de posse, o senhor disse que encontrou um ministério arrasado. Em razão disso, não seria de esperar que sua antecessora no cargo, Damares Alves, perdesse a eleição para o Senado? O bolsonarismo é um sintoma de uma sociedade que foi paulatinamente construindo uma cultura de normalização da morte, de normalização da degradação humana, de construção de uma cultura que de alguma forma normaliza a desigualdade, a pobreza e o racismo. Quando você compromete os limites institucionais, você abre espaço para isso. É como romper a tampa de um bueiro. A tampa do bueiro é a institucionalidade brasileira que de alguma maneira foi destruída nos últimos anos, fazendo com que aquilo que corria por baixo viesse à tona. Estamos em um país em que morrem assassinadas cerca de 50 000 pessoas por ano. Isso não é normal. E não é de estranhar a eleição de pessoas que endossam soluções consideradas violentas e que produzem ainda mais violência.

O governo está retomando o modelo original da Comissão de Mortos e Desaparecidos e da Comissão de Anistia. O senhor teme que isso cause desgaste com os militares? Não, porque os militares participavam dessas comissões e isso estava absolutamente contabilizado na lógica militar. O que acontece é que o governo Bolsonaro resolveu apostar na tensão e praticar atos que retirassem a pactuação feita em torno desses temas. Ele queria fustigar uma camada do Exército que ainda vibra com os parâmetros de 1964. Ele é um produto direto disso. Quando Bolsonaro acaba com a Comissão de Mortos e Desaparecidos, confronta parte da sociedade brasileira que pactuou ser necessário que as pessoas mortas e desaparecidas tivessem direito à memória e à verdade. Vamos realinhar os pactos que já tinham sido feitos. Não tem afronta, não tem conflito. Estamos em um processo democrático e não se constrói uma democracia sem memória, verdade e justiça.

O senhor defende a revisão da Lei da Anistia? Acho que todas as pessoas envolvidas em atos que lesaram o Estado brasileiro e o estado democrático de direito têm de ser julgadas. As circunstâncias políticas vão ditar como faremos isso. As reformas institucionais devem ser feitas para que fique muito evidente que o respeito à democracia deve governar a lógica do Estado brasileiro e as relações das Forças Armadas com a sociedade brasileira. Discursos de ódio não podem ser tolerados. Temos de pensar em justiça como reparação.

Isso, portanto, envolve punição real para quem torturou na ditadura militar? Eu acho que sim. Tortura é inadmissível. Se a gente não for capaz de dar uma resposta efetiva para isso, as torturas que são realizadas pelo Estado brasileiro se tornam modelo de ação para todas as autoridades brasileiras. Inclusive, as torturas da ditadura militar estão diretamente ligadas às torturas que ainda acontecem nas delegacias de polícia e à violência estatal de uma maneira geral. Precisamos desmontar esse tipo de coisa.

O que pode ser feito para reduzir a violência policial contra jovens da periferia? Não adianta chegar nas periferias e nas favelas dando tiro. Temos de dar um novo tratamento para a política de drogas. A gente precisa caminhar para uma discussão séria — e não sou eu que vou fazer sozinho essa discussão, quero deixar isso bem claro — sobre se é proveitoso que nós criminalizemos o uso de drogas como a maconha. É necessária uma discussão profunda para ver se isso não está servindo para prender jovem negro, colocar na cadeia pessoas que vão sair dali muito piores do que entraram. Para ver se a gente não está alimentando e financiando ainda mais uma indústria do armamento e da morte. A minha pergunta é utilitarista. Para que está servindo esse tipo de coisa?

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“Acho que todas as pessoas envolvidas em atos que lesaram o Estado brasileiro e o estado democrático de direito, incluindo os torturadores da ditadura, têm de ser julgadas”

Por que o senhor pontuou que não quer fazer esse debate sozinho? Vamos debater com o povo brasileiro. É um debate sobre segurança pública, sobre violência, sobre juventude. É um debate muito difícil de fazer quando você vai conversar com uma mãe na periferia que sabe das consequências disso. Não pode ser um debate só de classe média. Tem de entender o que é a vida das pessoas que moram na periferia, das pessoas pobres, da mãe que cria o seu filho sozinha e morre de medo de que o filho se envolva porque sabe que ele corre o risco de ser morto pela polícia ou nos conflitos da própria periferia. A polícia mata, o Estado mata, e as pessoas estão se matando entre si também. É uma violência generalizada. Então, é um debate que tem de ser feito de maneira muito responsável.

O senhor vai propor esse debate ao presidente Lula? Veja, temos de ter essa conversa, mas precisamos saber o momento certo para fazer o debate dentro das circunstâncias políticas que se apresentarem. A gente não pode ser ingênuo. Estamos vivendo um momento delicado no país. Fazer política é também olhar para aquilo que o Maquiavel chamava de virtù — ou seja, ver a circunstância e o momento contingente para fazer esse debate, mas tendo no horizonte que ele precisa ser feito.

O senhor se incomoda quando negros dizem nunca ter enfrentado racismo no Brasil? O racismo é algo tão enraizado na sociedade brasileira que certas pessoas consideram normais até mesmo certos tratamentos. Eu tenho amigos africanos que disseram que não sabiam o que era racismo até virem para o Brasil. Você não mede o racismo pela experiência dos indivíduos. Muitas vezes, algumas pessoas não passam por essa experiência, mas não quer dizer que outros não passaram por isso. E não quer dizer que o racismo não esteja de certa maneira organizando esse ambiente de normalidade que nós vivemos. Dá para perceber da seguinte forma: quantos negros, por exemplo, já foram entrevistados nas Páginas Amarelas? A experiência individual impede que vejamos o fenômeno em sua totalidade e assim deixamos passar as consequências brutais do racismo, como jovens negros sendo assassinados, o caso dos ianomâmis. É o que chamo de desvalorização da vida.

No governo Lula, houve um aumento considerável da presença de negros e mulheres no ministério, mas não nas pastas mais estratégicas, como Fazenda, Casa Civil, Planejamento, Defesa e tantas outras. Por quê? A luta contra o racismo não se faz em uma, duas, três gerações. Eu fico pensando na minha condição. Se pegarmos meus avós e bisavós, tudo que eles fizeram resultou no fato de eu estar aqui como ministro. Se pegarmos os antecedentes, os meus ancestrais vieram acorrentados no porão de um navio e eu sou ministro de Estado. É um caminho, e eu não sei dizer se ele é longo ou não, mas é um caminho que está sendo trilhado e vamos percorrer.

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Publicado em VEJA de 8 de fevereiro de 2023, edição nº 2827

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