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“Seja firme, Lula”, diz principal oponente de Maduro na Venezuela

Banida do pleito presidencial, María Corina Machado afirma que o brasileiro deve deixar de dar aval à ditadura e se mexer para garantir eleições livres

Por Amanda Péchy Atualizado em 15 mar 2024, 13h01 - Publicado em 15 mar 2024, 06h00

Em 2011, María Corina Machado, que estreava como congressista, interrompeu um discurso do então presidente Hugo Chávez (1954-2013) para denunciar a erosão da democracia na Venezuela. Irritado, ele desdenhou: “Sugiro que ganhe as primárias para discutir comigo. Águias não caçam moscas”. Corina não abandonou o ringue e, recentemente, conseguiu o feito de unir a oposição sempre esfacelada, tornando-se a principal rival de Nicolás Maduro no pleito presidencial marcado para 28 de julho — o aniversário de Chávez, que o guindou ao poder. Aos 56 anos, engenheira industrial especializada em políticas públicas pela Universidade Yale, nos Estados Unidos, ela virou uma radical antagonista do regime que atropela os direitos humanos e as instituições, que a tornaram inelegível por uma suposta ocultação de bens. “Foi uma decisão arbitrária. Maduro controla todos os órgãos públicos”, disse a política na entrevista concedida por videoconferência a VEJA, em meio à batalha para se manter no palanque. É uma corrida contra o tempo, já que o prazo para o registro das candidaturas se encerra em 25 de março.

Lula voltou a defender o regime de Maduro no último encontro dos dois, dias atrás. Essa aproximação é um obstáculo ao restabelecimento da democracia na Venezuela? Depende de como Lula conduzir a conversa. A interlocução dele com Maduro poderia até ajudar, servindo de alavanca para o processo democrático. Só que, para tal, Lula precisa assumir uma postura firme a favor das liberdades individuais e parar de dar aval a um autocrata.

Qual o papel concreto que Lula pode exercer neste tenso tabuleiro? O de líder. E não digo isso apenas por ele ser referência na política da América Latina, mas também porque o Brasil tem responsabilidade sobre a estabilidade na região. Um tremor na Venezuela transborda as fronteiras. Aliás, acho que todos os governantes de nações vizinhas, sobretudo aqueles que mantêm canal com Maduro, têm o dever de fazê-lo compreender que a melhor opção hoje à mesa é uma transição negociada.

Lula chegou a dizer que a afronta às instituições democráticas na Venezuela era uma “narrativa”. Faz sentido sob algum ponto de vista? Nenhum. Lula sabe muito bem que o que vivemos aqui vai muito além de uma narrativa. O regime de Maduro é o mais corrupto e violador dos direitos humanos da história. As pessoas sentem na pele. Há destruição econômica, institucional e social. Salários não passam de 1 dólar por mês, e as crianças têm sorte quando conseguem ir à escola mais de duas vezes na semana. Não à toa, a população debandou: 7 milhões já se foram em busca de um futuro.

O governo deu até o fim de março para que candidatos à presidência se registrem, e seu nome segue vetado. Quais as chances de constar na cédula? Elas estão nas mãos de Maduro, que precisa entender, pelos sinais emitidos dentro e fora do país, que sua melhor opção é a via eleitoral. Se eu for mesmo banida da disputa, estará explícito que essas eleições não serão livres. O próprio Parlamento europeu, em coro com outros observadores internacionais, enfatizou isso. Um pleito tutelado pode levar à repressão maciça, o que seria tremendamente contraproducente para Maduro. O governo perdeu a robustez e a coesão que já teve. O povo jamais vai aceitar mais um atentado contra o jogo democrático.

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“A interlocução de Lula com Maduro poderia até servir de alavanca para a democracia. Só que, para tal, ele precisa assumir uma postura firme em prol das liberdades individuais”

O medo não freia os protestos? Enquanto percorro o país, observo pessoas indo às ruas com mais ânimo e entusiasmo do que nunca. Andam horas a pé para chegar a meus comícios. Elas choram, se manifestam. Vejo a construção de um movimento mais amplo na sociedade, que extrapola qualquer ideologia. Aí reside sua força.

O que mudou? Há uma questão prática. Maduro desenvolveu ao longo dos anos uma engrenagem de extorsão social, como quando diz às pessoas que, caso não sejam fiéis ao regime, não receberão seu benefício mensal ou perderão o emprego. Com a crise atual, porém, essa capacidade está se esgotando. É neste cenário que um número crescente de venezuelanos enxerga na eleição uma oportunidade histórica para evitar mais pobreza e devastação.

O governo endureceu contra os opositores, adotando uma linha batizada de “Fúria Bolivariana”. Quais os efeitos imediatos? Assistimos à expulsão dos membros do gabinete da ONU para os direitos humanos e, em dois meses, quatro membros de minha equipe foram sequestrados pelo serviço secreto. Não sabemos seu paradeiro. Nossa sede também foi vandalizada. Me fazem todo tipo de ameaça ao rodar o país. Usam a polícia e o exército para bloquear estradas para que não possa me locomover. O nome disso é perseguição, com todas as letras.

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O presidente da Colômbia, Gustavo Petro, tornou-se uma espécie de porta-voz não oficial de Caracas nas costuras para pôr de pé as eleições. Acredita que ele queira alcançar uma solução democrática? Para a Colômbia, interessa, e muito, uma resolução pacífica na Venezuela. Com Maduro, a pressão de imigrantes na fronteira não vai parar, nem tampouco se coloca um horizonte para equacionar o enrosco colombiano com o ELN, grupo guerrilheiro que encontrou na Venezuela um santuário, onde conta com o apoio das autoridades.

Os Estados Unidos suspenderam sanções ao setor de petróleo venezuelano em troca da realização de eleições livres em 2024. Isso pode ser decisivo? Em tese, poderia, mas a situação até agora, em que a repressão se aprofunda, é uma demonstração de que a iniciativa americana não está surtindo o efeito desejado.

O que esperar de um eventual retorno de Donald Trump à Casa Branca? A Venezuela é assunto delicado. Envolve a segurança nacional americana. O cartel mexicano de Sinaloa se instalou no país, intensificando o tráfico de drogas, e viramos porta de entrada para a influência da Rússia e do Irã na América Latina. Pesa ainda a imigração — os venezuelanos inundam a fronteira sul dos Estados Unidos. Esses nós, sem Maduro, começariam a ser desatados. Por isso, acredito que qualquer um que ocupe o Salão Oval trabalhará para se livrar da ditadura.

A senhora é favorável às sanções? Sim. Sou a favor das negociações e, hoje, elas só se desenrolam porque existem as sanções. É um mecanismo relevante para combater crimes de impacto transnacional, como tráfico de drogas, lavagem de dinheiro e violações aos direitos humanos. Washington estabeleceu um prazo para Maduro liberar minha candidatura e a do restante da oposição. Se não acontecer, as sanções estarão de volta.

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Sem citar seu nome, Lula referiu-se à senhora dizendo que, quando ele não pôde concorrer à presidência, em 2018, indicou outro candidato “ao invés de ficar chorando”. Considera essa opção? É uma falácia. O problema não é meu nome. Se colocarem outro no lugar, o regime dará um jeito de impedir a candidatura. E assim será até que surja um postulante fraco, que Maduro derrotará. Me proibir de concorrer foi uma decisão arbitrária, possível apenas porque o governo controla todos os órgãos públicos.

Na oposição ao chavismo, o então deputado Juan Guaidó foi quem mais esteve perto do poder, mas acabou deixado à deriva em meio à desunião dos que eram contra Maduro. Por que o desfecho seria diferente agora? Dois fatores custaram caro a Guaidó. Ele estava rodeado de partidos que tentavam impor seus interesses, sem um projeto em comum, e subestimou a habilidade do regime de Maduro em se manter no poder. Desta vez, todas as siglas democráticas concordaram com um processo em que o povo legitimou uma única liderança. O apoio a mim é de 100%. Ele vem inclusive de uma ala descontente do chavismo.

A senhora é a favor da anexação de Essequibo, território da Guiana que Maduro tentou levar via plebiscito? Sabemos quais são nossos direitos históricos em relação a Essequibo, mas Maduro quis dar à discussão um teor ideológico, com o objetivo de unir o país num momento de fraqueza e ganhar fôlego. Não é coincidência que o anúncio do plebiscito tenha ocorrido logo após as primárias da oposição, onde 92% de mais de 2 milhões de eleitores me escolheram para representá-los. Mas a manobra teve resultado oposto, colhendo pesadas críticas da comunidade internacional — mesmo Lula ficou escandalizado e disse que não poderia haver ali uma guerra. O apoio interno a Maduro também não cresceu. Prova disso é que a população não compareceu como esperado ao referendo, ainda que sob ameaças.

“O serviço secreto sequestrou quatro membros de minha equipe. Me fazem todo tipo de ameaça ao rodar o país, bloqueando inclusive estradas. O nome disso é perseguição, com todas as letras”

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As chances de guerra por lá são reais ou é tudo bravata? Quero acreditar que Maduro compreenderá que o tiro saiu pela culatra e que prevalecerá o bom senso. Mas, não custa lembrar, estamos diante de um regime capaz de qualquer loucura.

No passado, a senhora defendeu o uso da força para derrubar o chavismo. Ainda cogita esse cenário? À época, fui mal interpretada: na verdade, me referia à força e ao poder de mobilização da população.

Sentaria à mesa para negociar com Maduro as bases para uma eleição democrática? Sem dúvida. O problema é convencê-lo de que isso é de interesse geral, incluindo uma parcela da turma que o apoia. Se eleita, vou garantir um julgamento justo a Maduro e seus comparsas — desde gente envolvida em crimes contra a humanidade àqueles que acabaram sendo vítimas do sistema.

A senhora diz admirar Margaret Thatcher e incluiu em sua agenda a privatização de estatais, como a petrolífera PDVSA. A ideia é caminhar à direita? Sou liberal. Esta é uma filosofia de vida, para além da política. A Venezuela tem potencial para se tornar o centro energético das Américas, o que nunca acontecerá com alguém como Maduro. Quero restaurar o Estado democrático de direito para atrair investimentos e fazer com que o princípio da propriedade privada volte a vigorar.

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Teme por sua vida? Todos temos medo na Venezuela. O regime está enfraquecido e sabe disso, aí endurece a repressão contra gente como eu, vista como inimiga.

Com três filhos no exterior, nunca pensou em sair do país? Tirei meus filhos daqui anos atrás, porque comecei a receber ameaças de morte. Sinto culpa por não poder estar presente na vida deles. É como se estivesse falhando como mãe. Mas sair daqui não dá. Num momento como este, não posso deixar para trás a luta pela democracia.

Publicado em VEJA de 15 de março de 2024, edição nº 2884

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