No mundo dos negócios, o empreendedor que consegue criar uma startup do zero e transformá-la em um unicórnio, ou seja, obter uma avaliação de mercado de mais de 1 bilhão de dólares, torna-se lenda viva. O israelense Uri Levine conseguiu a façanha duas vezes. Primeiro, com o Waze, a ferramenta que usa inteligência artificial (IA) para evitar engarrafamentos, vendido ao Google em 2013 por 1,1 bilhão de dólares. Depois, com o Moovit, aplicativo que traça as melhores rotas usando transporte público, comprado pela Intel em 2020 por 1 bilhão de dólares. Desde então, ele se envolveu em outras startups de diferentes setores, como a SeeTree, de agricultura digital, que fornece dados individuais sobre cada árvore em plantações de cítricos. Seu livro mais recente, Apaixone-se pelo Problema, Não pela Solução (Editora Citadel), reúne ensinamentos básicos para empreendedores. Em meados de março, ele estará no Brasil como convidado do South Summit 2024, em Porto Alegre, reputado evento de tecnologia. Levine falou a VEJA sobre os temores relacionados à IA, compartilhou sua visão sobre o futuro da mobilidade e avaliou o ecossistema brasileiro de inovação.
A humanidade parece incomodada com a inteligência artificial (IA), atenta a possíveis riscos éticos, ao sumiço de postos de trabalho e a outras implicações ainda desconhecidas. É preciso temê-la? Não estou preocupado. Quando a OpenAI, a empresa por trás do ChatGPT começou a fazer estardalhaço, em janeiro de 2023, todos ficaram surpresos com a velocidade com que a tecnologia se espalhou pelo mundo. Mas a OpenAI já tem oito anos. É sempre uma longa jornada até haver um bom produto para mostrar. Se formos perguntar a 100 pessoas quantas testaram o ChatGPT, a maioria vai dizer que testou, sim. Mas quantas o estão usando até agora? Pouquíssimas, e provavelmente apenas no setor de produção de conteúdo. Em qualquer outra área, a tecnologia simplesmente ainda não é boa o suficiente.
Por que tanta certeza de não haver grandes danos no sumiço de empregos, com a expansão da IA? Basta seguir o que a história nos mostra ao longo dos séculos. Toda vez que construímos algo novo, todo mundo diz, rapidamente, que milhares de pessoas perderão empregos, como reflexo inevitável. Não é o que acontece e as experiências recentes comprovam. As grandes transformações mudam o mundo de forma bem mais lenta do que pensamos. E, a rigor, as pessoas encontram algo melhor para fazer, ao perder lugar para a máquina. Portanto, ao fim, a IA acaba aumentando a produtividade.
Há outras áreas além da produção de conteúdo que serão transformadas pela IA? Nos serviços médicos é esperado que a IA aumente drasticamente a produtividade, e é o que já vemos acontecer. Esse movimento tornará o mundo melhor, mais seguro, mais saudável.
Nem tão melhor assim, quando paramos dentro do carro, infinita e desesperadamente, no trânsito de cidades como São Paulo. Como resolver o nó da mobilidade em metrópoles? Em São Paulo, a título de exemplo, seria preciso destinar metade das ruas apenas para transportes públicos. Ou ao menos em áreas centrais. E nessas vias haveria um veículo que vai e volta o tempo todo, transportando as pessoas. Como um elevador. Pense no metrô. Ele é rápido porque não há trânsito. Há vias dedicadas apenas aos vagões subterrâneos. Os governos poderiam subsidiar esse transporte de várias formas. Pode ser totalmente gratuito, ou ter um preço reduzido.
“É vital se apaixonar pelo problema, não pela solução. A jornada das startups envolve criação de valor — e a maneira mais simples de criar valor é resolver um problema”
Mas as pessoas estariam dispostas a abrir mão do conforto de andar em seu próprio carro? Os cidadãos avaliam três condições quando escolhem diferentes tipos de mobilidade: conveniência, velocidade e custo. Se o sistema for gratuito, ou barato, e simultaneamente rápido, as pessoas estariam dispostas a abrir mão de um tipo de conveniência por outra melhor. Este é o futuro da mobilidade.
E o que é preciso para pôr em prática uma mudança desse quilate? Um prefeito que tome essa decisão.
Simples assim? Porque no Brasil já houve até protestos deflagrados pela redução das tarifas de transporte, que as autoridades não conseguiram bancar… No início, todo mundo vai odiar o sistema, porque ele bloqueará metade das ruas para carros particulares. Mas se algum político fizer isso, tenha certeza, será o próximo presidente da República. Vai se reeleger para sempre (risos).
Nesse tipo de cidade que o senhor propõe, dá para imaginar um futuro em que dirigir um carro será algo obsoleto? Ora, há 100 anos todo mundo andava a cavalo, e pouquíssimas pessoas tinham um carro. Veja onde estamos hoje. É bem razoável pensar que dirigir carros se torne o que é andar a cavalo hoje: um hobby. Ou seja, apenas algumas pessoas cultivariam o antigo hábito. Nos subúrbios, no entanto, acho que o carro continuará sendo um meio de transporte fundamental, dadas as dificuldades de deslocamento.
Parece haver, de fato, mais dificuldades do que imaginamos para abandonar comportamentos consolidados. Como acelerar as mudanças por meio de startups inovadoras? Penso no título do meu livro mais recente: é vital se apaixonar pelo problema, não pela solução. A jornada das startups envolve criação de valor — e a maneira mais simples de criar valor é resolver um problema. Entender se muitas pessoas sofrem com aquele problema, conversar com muitas delas para saber como cada uma olha para o problema e, por fim, facilitar a compreensão do que se está oferecendo. Dou um exemplo. Imagine que estamos, aqui e agora, em 2007 e eu digo que vou criar um sistema de navegação baseado em inteligência artificial. Muita gente acharia interessante, e não muito mais do que isso. Não se importariam muito. Mas se eu dissesse que estou criando um aplicativo capaz de ajudar a evitar engarrafamentos, aí sim chamaríamos atenção. O lançamento do Waze seguiu essa trilha — ele se debruçou apaixonadamente em cima de um imenso problema, e daí veio a solução.
Não há um certo exagero associado ao sucesso do empreendedorismo? Mas isso é ótimo. Pense bem: muitas das maiores empresas do mundo, hoje, foram startups em um passado não tão distante. Empreendedores mudarão o mundo. Por isso, precisamos mais deles. E é preciso lidar com o medo de falhas. Se há um temor muito grande, paralisante, acaba-se por não empreender. Os empreendedores, acredite, são heróis.
O Brasil é bom terreno para o empreendedorismo? Sim. Subestima-se o Brasil, mas é um mercado de enorme potencial. As startups americanas pensam em ir para a Europa depois de se consolidarem nos Estados Unidos. Em Israel, pensam em seguir para os Estados Unidos. Eu digo que não, e dou um conselho: deveriam buscar países de economia vigorosa, de mercado consumidor volumoso, e onde não seja tão difícil vencer.
O Brasil preenche esses requisitos? Sim, porque a população é enorme e não há muita competição, a rigor. Para muitos negócios novos, é um país onde é mais fácil vencer. A Indonésia também é interessante. O mercado lá é muito semelhante ao brasileiro. A população é semelhante, em torno de 270 milhões de habitantes, e o comportamento de consumo é parecido.
O senhor, em paralelo à busca de uma nova tecnologia matadora, tem se dedicado a escrever livros que funcionam como guias, manuais de quem acumulou conhecimento na vida. Por que essa postura? Muitas pessoas me conhecem como mentor e professor. Fico igualmente satisfeito se crio algo para mim, um negócio próprio, ou se levo as pessoas a criarem algo. E o livro é uma maneira de cumprir meu destino como professor. Compartilho meu conhecimento, que é algo fundamental para empreendedores. No fundo, o legado do ensinamento pode vir a representar uma contribuição maior do que a do Waze para a sociedade.
Depois de uma década de atuação no Vale do Silício, o que o senhor acredita haver hoje, lá, do ponto de vista de métodos de trabalho e criação, que não havia antes? Pouca coisa mudou, na verdade. O processo de pensar em uma solução para um problema da vida real é exatamente o mesmo. Acho muito mais interessante, na verdade, olhar para o que mudou no ecossistema brasileiro. Em 2010, havia apenas um unicórnio na América Latina, o Mercado Livre. Agora, há mais de quinze. É uma revolução.
“Voltaremos ao normal nas empresas. Até o Zoom, um dos símbolos da vida durante a pandemia de Covid-19, anunciou o retorno aos escritórios físicos”
E o que mudou no Brasil? Há um medo menor de falhar, o que aumenta o interesse pelo empreendedorismo. Investidores estão mais atentos, porque a regulamentação mudou. Em 2010, quando estive no Brasil, a estrutura tributária para startups era rígida. Se abrisse uma startup certamente teria de pagar muito imposto. Não é mais assim, há mais sensatez — o que significa atrair investidores estrangeiros. Mas existem problemas, claro.
Quais? Um deles é a falta de profissionais qualificados para determinadas atividades. Não há engenheiros. É um problema global, reconheço, mas outros países escolheram bons caminhos, e o Brasil poderia segui-los. Que tal permitir, por exemplo, que engenheiros indianos trabalhem no Brasil, regularizados? A transferência de conhecimento seria extraordinária.
Mesmo com o modelo híbrido de trabalho imposto pela pandemia de Covid-19, e que vigora, seria realmente fundamental importar cérebros? Voltaremos ao normal nas relações profissionais, nas empresas. Até o Zoom, um dos símbolos da vida durante a pandemia de Covid-19, anunciou o retorno aos escritórios físicos. Se nem eles acreditam mais na eficácia das reuniões e decisões por Zoom, nós não deveríamos acreditar também. As ferramentas de vídeo não são uma alternativa aos encontros cara a cara, simples assim. Nas minhas companhias, voltamos ao escritório quatro dias por semana. Com isso, aumentamos a produtividade. A questão é que as pessoas não trabalham da mesma forma quando estão em casa. Acredito em um outro equilíbrio, que organize os dois mundos. Sei, naturalmente, que para muita gente trabalhar em casa oferece benefícios. Mas não basta.
O Waze e o Moovit explodiram ao lidar com os nós da mobilidade urbana, sobretudo. De onde virá o próximo grande sucesso? Do agro. Hoje, é possível otimizar um sistema de irrigação, de fertilização ou o uso de produtos químicos graças a ferramentas de agricultura digital, que medem tudo e fornecem informações para o produtor. A partir daí, ele insere essas informações nas máquinas e põe tudo em prática. Esse é o futuro da agricultura em geral: medir, analisar e implementar os recursos automaticamente. É o caminho a seguir.
Publicado em VEJA de 1º de março de 2024, edição nº 2882