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Lemann, Telles e Sicupira não tiveram culpa, diz presidente da Americanas

Contratado após a revelação de escândalo contábil, Leonardo Coelho afirma que o trio não sabia da fraude e fala sobre as investigações

Por Pedro Gil, Victor Irajá Atualizado em 5 jan 2024, 10h12 - Publicado em 5 jan 2024, 06h00

Em janeiro do ano passado, o executivo Leonardo Coelho estava de férias em Israel quando recebeu uma ligação telefônica com uma proposta desafiadora, para dizer o mínimo. Do outro lado da linha estava um representante da consultoria Alvarez & Marsal, empresa na qual Coelho atuava como sócio. Era um aviso de que a rede varejista Americanas estava em busca de um novo presidente. O escândalo contábil de 25 bilhões de reais havia sido revelado poucos dias antes e suspeitava-se que a empresa não teria condições de sobreviver à bomba que desabara sobre ela. Mesmo assim, Coelho se candidatou à vaga e acabaria sendo o escolhido para chefiar a operação. Um ano depois, com um processo de recuperação judicial em andamento e investigações sobre a fraude prestes a ser concluídas, a empresa continua seu calvário — nem o balanço financeiro de 2023 foi divulgado. Ainda assim, o executivo segue firme em seu plano de resgatar uma marca presente no mercado brasileiro há quase um século. Na entrevista a seguir, a primeira dada com exclusividade desde que assumiu o cargo de CEO, Coelho fala do plano de reestruturação, exime o trio Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira, maiores acionistas da Americanas, de culpa no escândalo e diz que a fraude foi arquitetada pelas principais lideranças da companhia. Confira os principais trechos:

O senhor assumiu a presidência da Americanas no início da crise. O que encontrou? Tive a sorte de chegar com as nuances da crise minimamente desenhadas. Eu tinha noção do que encontraria após as revelações feitas pelo ex-presidente Sergio Rial, mas isso não era totalmente perceptível para quem estava fora do sistema que arquitetou a fraude.

Como foi feito o convite? Eu estava em Israel quando o pessoal da Alvarez & Marsal comentou que a Americanas buscava um novo CEO e perguntou se poderia me indicar. Daí começaram as conversas. Ia visitar minha filha lá no exterior, cancelei e voltei ao Brasil para fazer as entrevistas.

O episódio na Americanas é o pior caso que o senhor já viu? Em alguns aspectos, sim. Em outros, não. Já vi fraude em outros lugares, mas com esquemas menos sofisticados. Não me assustei com nada que encontrei porque escolhi estar nesse processo. De toda forma, é uma situação muito complexa. A vitória de nossos credores, que aprovaram o plano de recuperação judicial, é um passo, mas não garante muita coisa. Temos um trabalho árduo pela frente. Agora precisamos gerar caixa.

Qual é a estratégia para lidar com o problema? Quando cheguei, tentei separar o trabalho em três grandes frentes. A primeira, para lidar só com a investigação, em papel reativo, para dar informações aos que estavam investigando. Isso mudou por causa da CPI. Tivemos que ser um pouco mais proativos, o que também foi bom. A saída foi criar um comitê independente para não sermos acusados de ter algum viés. Outra frente foi com os credores, para garantir que tivéssemos uma estrutura de capital forte novamente. A terceira foi manter as lojas funcionando razoavelmente.

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Quem é o principal responsável ou quem são os maiores responsáveis pela fraude? A CPI revelou 95% do quadro, mas não estamos fazendo investigação. Quem faz isso é o comitê, que é, de fato, independente. Apenas lamentamos a demora, porque achávamos que poderia ser mais rápida a entrega do resultado. Na minha visão, quanto antes o resultado for divulgado, melhor vai ser para a empresa.

Quais são os resultados esperados? Teremos a revelação dos motivadores da fraude, mas, tirando isso, acho que haverá poucas surpresas. A partir disso, a Polícia Federal e o Ministério Público terão capacidade de nos surpreender mais adiante.

“Houve fraude e ela foi arquitetada no segmento da alta liderança. O ex-CEO Miguel Gutierrez teve a oportunidade de ser ouvido na CPI, mas ele preferiu ficar na Espanha”

Além de fraude, é possível falar em corrupção? Não tenho fatos para cravar o que motivou a fraude no nascedouro. Todas as informações que tínhamos sobre eventuais motivadores foram entregues à CPI, ao Ministério Público e à Polícia Federal, e estão sendo investigadas. Não é fácil comprovar a motivação. O que posso dizer é que houve fraude e ela foi arquitetada no segmento da alta liderança.

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A Americanas vai buscar a responsabilização criminal dos implicados? Depende do resultado. Se a investigação apontar crime, vamos para cima. No mínimo, vamos entrar com um pedido de ressarcimento. Temos obrigação estatutária de zelar pela Americanas. Se não faço isso, qualquer acionista poderá me questionar juridicamente.

Os principais acionistas da empresa, Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Sicupira, tinham conhecimento da fraude? Analisamos milhares de documentos para descobrir quem, de fato, esteve envolvido na fraude e não tenho elementos que mostrem a participação deles ativamente ou indiretamente. Um conselho como o da Americanas estava próximo do negócio o suficiente para saber que existia uma estrutura de governança. Não tenho como dizer nada diferente disso.

O ex-presidente Miguel Gutierrez diz que Lemann, Telles e Sicupira exerciam “forte influência e controle” sobre a empresa. Mesmo assim, eles não viram nada? O conselho estava próximo do negócio, é normal. Estavam muito presentes, sim. Mas os números eram enviesados pela alta liderança. É como pilotar um avião e o marcador falar que estamos a 10 000 pés, mas o correto é 1 000 pés. A fraude estava no nascedouro. Não tenho a capacidade de julgar o que o Miguel disse além disso, mas acho estranho. Ele teve a oportunidade de ser ouvido na CPI, mas preferiu ficar na Espanha. Até o momento ele preferiu essa posição de acusação aos três.

Como funcionava o mecanismo da fraude? O rombo é avassalador, mas todos os analistas olhavam para o balanço e viam uma performance melhor que os pares da empresa. Foi criado um lucro fictício. Por isso, a fraude perdurou por tanto tempo e demorou a ser detectada. Precisou de muita gente envolvida. A alta liderança sozinha não consegue fazer isso. Teve participação, dolosa ou não, de muita gente do departamento financeiro.

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Há quanto tempo os balanços da Americanas eram fraudados? Não identificamos quando ela começou, mas há pelo menos dez anos havia algum tipo de movimentação estranha.

Qual balanço o senhor faz da CPI? Foi perda de tempo ou houve revelações importantes? A CPI colheu algumas vitórias claras, porque teve habilidade para acelerar a investigação, dar celeridade para a homologação das delações. Infelizmente, ela foi atropelada no sentido mais técnico. No sentido geral, foi uma vitória.

A revelação de fraude contábil causou um distúrbio no setor de varejo. O risco sistêmico está afastado? Sim, causamos um impacto. Seria balela falar que não causamos. Ainda há risco. Uma parte dele era uma pressão sobre a indústria, com seu principal cliente em recuperação judicial. Isso nós mitigamos com a aprovação da recuperação judicial. Mas existe outro fator, que é a disposição dos agentes de crédito para tomar risco do varejo. Isso ainda permanece crítico. Não tem a ver só com a gente, mas também com a situação fiscal do país e com o próprio momento do varejo. Está ruim para todo mundo. Saberemos se esse risco foi mitigado apenas no segundo semestre.

A negociação com credores tomou tempo, com resistência dos bancos Santander e Safra. Por que isso aconteceu? Temos uma reestruturação mais complexa do que a média, porque envolve a troca de dívida por participação societária. Isso é muito difícil, não é o formato padrão. Além disso, durante a negociação, alguns credores apostam contra a banca — é o cara que cria problema para sair com algum desenho melhor para si. O Safra tinha alguns pontos, o Santander também, que foram equalizados. A posição deles ficou fragilizada e entenderam que era melhor o acordo do que a briga jurídica.

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Haverá mudanças no modelo de negócio para entregar rentabilidade, sem o uso dos recursos que levaram ao escândalo? Precisamos gerar um ano de estabilidade e corrigir ineficiências que ainda temos, como alguns problemas logísticos. Reformatamos lojas, deixando-as mais simples para o dia a dia, e remontamos a estratégia com fornecedores. No digital, criamos sinergia, oferecendo aquilo que não temos condição de oferecer em lojas físicas. Outra frente, que é a Ame, será apenas uma fintech de apoio ao varejo e não uma instituição financeira, como ela pretendia ser. De modo geral, queremos gerar riqueza aos nossos acionistas em 2025, mas não tem caminho mágico.

“O rombo é avassalador, mas todos os analistas olhavam para o balanço e viam uma performance positiva. Foi criado um lucro fictício. Muita gente se envolveu, de forma dolosa ou não”

Por que a Americanas ainda não divulgou seus resultados financeiros? Estamos trabalhando para entregar no fim deste mês. A parte mais importante era refazer as contas de 2021 e 2022. Ali, não podia ter erro. Era a base das peças que consolidavam todas as movimentações erradas. Tivemos uma dificuldade adicional, porque quem estava confeccionando esses balanços tinha acabado de chegar. Isso levou tempo. Com essa etapa concluída, a equipe de contabilidade passou a se debruçar sobre os números de 2023. Prefiro atrasar do que divulgar algo errado.

A revelação da fraude completa um ano agora. O que mudou desde então? Temos grandes desafios. O principal deles é mudar a cultura da empresa, o que já estamos fazendo. Além disso, não fazemos nada sem que seja realizado um cálculo por trás, que passa pela área de controladoria. Fazemos conta para tudo, de forma obsessiva. Isso nos endurece um pouco, reduz a flexibilidade que existia no passado, mas nos ajuda a não cometer erros. Estamos fortalecendo também nossos mecanismos de governança, que não foram capazes de entender o que estava acontecendo.

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Que lições é possível tirar desse episódio? A primeira é nunca tirar o foco da operação. Varejo é contar centavos. Não tem saída mágica para criar resultado que não seja a partir do trabalho. A segunda lição é que tem de existir, numa empresa como a Americanas, uniformidade de cultura, que vai gerar uniformidade de ação. A terceira lição é cuidar de nossos colaboradores. Para quem não estava envolvido na fraude, é uma frustração enorme trabalhar num lugar que passou por tudo isso. Precisamos cuidar muito bem das pessoas para que elas saibam qual é o resultado de seu esforço.

Qual é a nova cultura da empresa? Estamos revendo propósitos e valores sem esquecer que somos uma empresa de varejo simples. A Americanas não pode perder isso do horizonte. Somos uma empresa simples que atende às necessidades básicas de um jeito descomplicado.

Qual é o futuro da Americanas? Eu sonho que a Americanas volte a ser o que era no passado: uma empresa que tem a capacidade de despertar memórias afetivas em seus clientes.

Publicado em VEJA de 5 de janeiro de 2024, edição nº 2874

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