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Jussi Toivanen: ‘A confiança na mídia tradicional é antídoto às fake news’

O responsável pelo melhor programa do mundo contra notícias falsas critica gigantes como o Facebook por não barrarem o fenômeno

Apresentado por Atualizado em 21 mar 2020, 11h42 - Publicado em 20 mar 2020, 06h00

Um estudo recente patrocinado pela fundação mantida pelo bilionário George Soros mediu o nível de educação midiática da população de 35 países europeus. Quanto maior a nota, maior a capacidade da sociedade de identificar fake news. A Finlândia ocupou o primeiro lugar do ranking, ratificando sua posição de modelo mundial nessa área desde que lançou, em 2014, um programa de combate ao fenômeno. Além de conclamar a população do país a ajudar na causa, seu presidente à época, Sauli Niinistö, criou uma área encarregada de ações variadas, que vai da implementação de disciplinas em salas de aula para ensinar a identificar notícias falsas ao apoio público a jornalistas contra campanhas difamatórias movidas por grupos interessados em espalhar desinformação. Atual responsável pelo programa, Jussi Toivanen, chefe de comunicação da primeira-ministra Sanna Marin, conta na entrevista a seguir os detalhes da bem-sucedida experiência finlandesa.

Qual o poder de estrago das fake news, como vem ocorrendo agora com a disseminação de boatos sobre o coronavírus? Realmente, já estão sendo disseminadas notícias falsas, desinformações e teorias da conspiração em relação ao coronavírus. As fontes têm sido variadas, mas com um objetivo em comum: causar confusão e desconfiança. São ações oportunistas de pessoas e grupos que querem usar o momento de temor mundial para divulgar os próprios interesses, como métodos que prometem curas milagrosas, ou, pior ainda, lucrar em cima da audiência inerente a assuntos que atraem a atenção de um grande número de pessoas. O fato é que crises mundiais como esta estimulam esse tipo de atividade nas redes sociais.

No Brasil, o Congresso se debruça no momento em uma CPI das Fake News e há suspeitas de que a desinformação é alimentada por uma rede controlada por um dos filhos do presidente. O senhor tem acompanhado o caso? É difícil traçar qualquer comentário sobre o caso brasileiro, uma vez que as investigações ainda estão em curso. Mas, na Finlândia, para evitar situações parecidas, elaboramos uma série de alertas sobre as maneiras como pessoas interessadas em disseminar fake news poderiam interferir na política por meio de mensagens em redes sociais. Uma das estratégias do nosso governo foi exaltar os motivos pelos quais o sistema eleitoral finlandês se tornou bastante robusto, e o principal deles é o fato de ser realizado em meio a uma sociedade acostumada a desenvolver o espírito crítico. Então, exaltamos isso em campanhas publicitárias, e deu certo.

“Não confio nos gigantes da mídia digital. O Facebook e outras empresas são ótimos em relações públicas, mas deveriam ter responsabilidade social no que diz respeito à disseminação
de fake news”

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O que a Finlândia tem a ensinar ao Brasil no campo das fake news? É difícil comparar a realidade finlandesa com a brasileira porque a história e o modo como as sociedades se formaram são diferentes. O tema das fake news passou a ser abordado de maneira oficial pela Finlândia a partir de 2014, quando demos início ao programa nacional. Muitas vezes essas publicações falsas deixam uma série de pistas que são facilmente reconhecíveis por quem está habituado ao seu mecanismo.

Qual o peso da educação no programa finlandês anti-fake news? A parte educacional começa no momento em que uma criança aprende a mexer no iPad. Para os maiores, temos treinamentos para mostrar como a desinformação é fabricada e como é possível reconhecer uma fake news. A educação e a alfabetização digital são importantes porque fazem com que as pessoas não embarquem tão facilmente em mentiras que acessam no ambiente virtual. Há um conhecimento que pode ser disseminado de forma simples sobre o que pode estar por trás de uma mensagem, e se pode haver interesses particulares por trás delas.

Qual é a maior dificuldade em combater o problema? Não se trata de um modelo único de atuação, e deve envolver desde grandes organizações do setor de tecnologia até os indivíduos engajados na comunicação virtual. As ferramentas das redes sociais são de graça e fáceis de usar, ou seja, o acesso é universal e de difícil controle. Por isso, esse campo representa um terreno fértil para quem está empenhado em abalar a democracia e limitar a liberdade de imprensa para impor a sua versão dos fatos em benefício próprio ou de um determinado grupo.

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Poderia citar o caso mais emblemático de fake news registrado na Finlândia? Não tivemos um caso que merecesse um destaque especial. Os alvos da desinformação são quase sempre os mesmos de outros países do mundo. Os ataques vêm de grupos anti-imigração e alinhados com a extrema direita. Lidar com esse tipo de atividade e contê-la é basicamente um trabalho diário. Quando digo “nós”, incluo a sociedade também, porque, como o país é inteiro é afetado, precisamos do envolvimento de todos os atores, e não somente dos governantes.

A Justiça tem o poder de combater as fake news? Esses casos caem na esfera criminal, uma vez que as acusações se convertem em injúria e difamação. Mesmo que a Justiça decida pela condenação, ela passa ao largo da discussão sobre mídia e comunicação e tem pouco impacto no eixo comportamental de quem dissemina as notícias falsas.

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Gigantes da mídia social como o Facebook estão empenhados o suficiente no combate à disseminação de notícias falsas? Há um discurso bem elaborado sobre o assunto. O Facebook e outras companhias são ótimos em relações públicas e em realizar apresentações bonitas em PowerPoint, mas não sabemos se estão realmente fazendo o que divulgam. Eles têm de fato controle sobre o conteúdo de suas plataformas?

Qual sua opinião a respeito disso? Eu não confio nessas empresas. As ferramentas oferecidas pelas redes sociais acabam sendo usadas contra a sociedade e os indivíduos. A verdade é que o Facebook disponibiliza uma plataforma para pessoas mal-intencionadas afetarem as eleições de um país, por exemplo. Por isso, essas empresas devem ter uma responsabilidade social no que diz respeito à disseminação de fake news, o que não vemos acontecer com tanta clareza.

Até onde os governos podem impedir a disseminação de fake news, já que o compartilhamento de mensagens se dá no âmbito pessoal? Na Finlândia, o papel do governo é agir na retaguarda e informar a população, além de manter atualizada a programação escolar nesse sentido. Por enquanto, essa tem sido uma boa estratégia no nosso país, porque é preciso estar preparado para um dos maiores desafios do futuro, que será conseguir diferenciar o que é real do que não é. Nem todos os países têm a mesma tática, alguns controlam o que as pessoas acessam, por exemplo.

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“A mídia é o vaso condutor da democracia. Quando há a intenção de ferir uma sociedade, a imprensa é o primeiro alvo para que uma nova ‘verdade’ se imponha”

Os deepfakes são o maior problema atualmente das redes sociais? Sim, e a perspectiva não é das melhores. O acesso a essas ferramentas de desvirtuar a realidade, como as usadas para criar o falso discurso do ex-presidente americano Barack Obama por um comediante, por exemplo, será cada vez mais fácil e barato. Quanto mais dúvidas tivermos de que algo é real ou não, mais danos poderão ser causados na sociedade. A manipulação da imagem pode ser feita, por exemplo, na comunicação entre indivíduos, quando conversamos com alguém por videochamada. No futuro, como vamos poder ter certeza de que a pessoa de fato existe?

Há algo a ser feito em relação a isso? Tendo a acreditar que a tecnologia está disponível para todos, então, pode ser que, assim como há pessoas que a manipulam para criar deepfakes, há outras que podem usar os mesmos recursos para ajudar a reconhecê-los e combatê-los. Vai ser uma espécie de jogo de gato e rato. Temos de nos preparar para os ataques da desinformação, porque vão ser uma realidade em um futuro próximo. Se formos pensar bem, o Cavalo de Troia foi o primeiro caso de desvirtuamento de informação da história, e hoje não passa de uma fábula, mas durante a Guerra de Troia era uma realidade assustadora. Os mecanismos tecnológicos estão sendo desenvolvidos tão rápido que podemos deparar com uma série de episódios semelhantes, mas só saberemos se se trata de uma farsa muito tempo depois.

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Há diferença em relação a como as diferentes gerações reagem às fake news? Sim, quando se observou esse comportamento durante as eleições americanas, constatou-se que os idosos são os que mais compartilham fake news em redes sociais, por exemplo. Por isso, aqui na Finlândia, voluntários organizam grupos de discussão em bibliotecas para se aproximar desse público, que ainda aprende ­— é claro que não de forma generalizada — a ter o mundo todo dentro de seu smartphone.

O que acha da tática de políticos como o presidente americano Donald Trump e o brasileiro Jair Bolsonaro, que se apressam em tachar de notícia mentirosa qualquer menção na imprensa que os incomode? Essa estratégia é mais uma forma de atacar a democracia e pôr em xeque um dos seus principais pilares, a liberdade de imprensa. O mais importante em toda sociedade é a confiança nas instituições. As pessoas devem confiar em seus governantes e em outros órgãos representativos, como a Justiça. A mídia é o vaso condutor da democracia. As pessoas ainda confiam na imprensa, e isso é bom, mas essa visão pode mudar com o tempo, já que é o primeiro alvo a ser atacado pelas fake news. Quando há a intenção de ferir uma sociedade, a imprensa é o primeiro alvo. Ela deve ser desacreditada para que uma nova “verdade” se imponha, ainda que baseada em mentiras.

Até que ponto a crise de credibilidade do jornalismo profissional abriu espaço para a disseminação das fake news? As empresas de comunicação enfrentam crises financeiras em todo o mundo, então, isso afetou a forma como o jornalismo é feito, com redações mais enxutas. Mas acredito que as fake news tomaram espaço apesar dessa crise. A confiança na mídia tradicional é um dos melhores antídotos contra a disseminação de falsas informações.

Além da contaminação do ambiente político, qual é o maior malefício que a exposição às fake news pode causar a longo prazo? Deixar as pessoas paranoicas, sem a sensação de poder confiar em nenhuma fonte de informação. É algo que os adeptos das fake news querem: deixar as pessoas descrentes nas fontes oficiais ou ao menos desconfiadas em relação ao que está publicado. É criado um ambiente de medo e pânico, ainda que, fora das plataformas on-line, na maioria das vezes não haja nada ameaçador concretamente. Esse comportamento pode se reverter no aumento da incidência de doenças psicológicas e emocionais nos próximos anos. Por isso, devemos manter a atenção em relação ao tema.

Publicado em VEJA de 25 de março de 2020, edição nº 2679

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