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Tá caindo música do céu…

...e filmes, séries, livros, softwares, tudo! A fenomenal capacidade de armazenamento de dados e a crescente velocidade da internet mudaram a maneira como produzimos e consumimos os conteúdos que nos alimentam

Por Filipe Vilicic e Raquel Beer
30 abr 2015, 23h28

As nuvens, por onde pisamos distraídos, quase tocando nos astros, sempre foram um lugar para não estar – à exceção dos poetas, dos nefelibatas e dos aviões. Das nuvens, hoje, é de onde não devemos descer, porque nelas está tudo, mas tudo mesmo – as mais belas canções, os livros, as séries de televisão, os filmes, os softwares, o dinheiro no banco. Nuvem – ou cloud, em inglês – é o nome que se dá ao conjunto de potentes servidores remotos que armazenam todo o conteúdo digital à mão. A velocidade de processamento de dados associada ao aumento exponencial da capacidade de guardar informações mudou para sempre o modo como produzimos e consumimos os alimentos para a alma, para, aí sim, termos o direito de caminhar nas nuvens.

A história dessa aventura tecnológica é jovem demais para ser tão espetacular, daí seu fascínio. Quando a internet começou a se popularizar, nos anos 90, ela era uma obra aberta, com poucas certezas e muitas apostas erradas, sabemos hoje. Uma das crenças anunciava um mundo virtual povoado exclusivamente de amadorismo e pirataria. Era assim há vinte anos. Pela rede circulavam pencas de filmes roubados, misturados a pornografia e a um ou outro arquivo particular de gatinhos adoráveis. Acreditava-se que a única forma de achar conteúdo de qualidade seria ligando a televisão, indo ao cinema ou alugando um VHS, objeto tão ancestral quanto a pedra lascada. Cortemos para o presente. Sim, há vídeos de gatos, pornografia e pirataria. Mas a rede nos trouxe também o iTunes, o Netflix, o Spotify e, com eles, conteúdo de excelência – e legalizado. O que ocorreu entre o amadorismo dos anos 90 e o profissionalismo a que chegamos? A peça-chave foi o avanço acelerado da tecnologia atrelada à internet. É o alicerce do mundo on demand (sob demanda), onde todos podem ver o que quiserem, onde estiverem e na hora que escolherem. O homem é o homem e suas circunstâncias.

O mundo cada vez mais rápido
O mundo cada vez mais rápido (VEJA)

Nas últimas duas décadas, a velocidade da rede aumentou 19 000%. Hoje assistimos por streaming (sem fazer o download, em um fluxo contínuo de dados) a uma série de qualidade holly­woodiana criada exclusivamente para ser vista on-line. A lista de exemplos é enorme, basta checar as produções do Netflix já indicadas ao Oscar e ganhadoras de Globos de Ouro. Qualquer um passou a poder gravar o mundo ao redor com o smartphone e transmitir o que vê em tempo real. Na semana passada, as primeiras imagens do terremoto no Nepal não chegaram pela televisão. Surgiram pelo onipresente Facebook e coladas a aplicativos como o Periscope e o Meerkat, novas redes sociais afeitas ao compartilhamento de vídeos ao vivo. Essas novidades seriam impossíveis com a velocidade da internet em seus primórdios. Motivo: demoraria tanto para fazer o upload e reproduzir on-line o arquivo que o vídeo seria visto quadro a quadro, tamanho o engasgo na transmissão.

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No centro dessa transformação está o streaming. A possibilidade de rodar um arquivo, seja um filme ou uma música, diretamente da nuvem, no dispositivo on-line que for, abriu novas portas para o mundo virtual. Definiu Ted Sarandos, produtor de filmes que chefia a criação de conteúdo do Net­flix: “Na era da internet, quando as pessoas ouvem falar sobre a existência de algo que as interessa, esperam ter acesso imediato a esse algo”. Uma pesquisa do conglomerado americano de mídia Viacom (dono de canais como MTV e Nickelodeon), à qual VEJA teve acesso com exclusividade, retratou essa nova postura do espectador. Depois de entrevistadas 10 500 pessoas, inclusive no Brasil, o estudo constatou a ascensão do VOD (sigla em inglês para vídeo sob demanda). Um brasileiro típico tem à disposição cinco dispositivos para ver os vídeos. Filmes e séries são transmitidos não apenas na TV, como em smartphones, tablets, computadores, laptops ou videogames, que dão acesso a serviços como o Netflix. Sete em dez pessoas com acesso a tecnologias de VOD a utilizam semanalmente.

A sensação de controle, de poder começar a ver um episódio de Demolidor, a nova série sensação do Netflix, na TV, pausar e terminar no tablet no caminho para o trabalho é o cerne do sucesso do VOD. Segundo a Viacom, 51% das pessoas preferem assistir a algo “quando” quiserem em vez de “onde” e “como”

escolherem. Em outras palavras, tanto faz se é no cinema, na televisão ou no YouTube, o que se deseja é ter acesso imediato. Indo além, apesar de 71% ainda terem os canais de TV como principal referência para descobrir programas, 50% não aceitam mais assumir a postura de espectador passivo. É o indivíduo definido como “engajado”. Ao mesmo tempo em que vê TV, acessa outras plataformas de informação (como o smartphone e o tablet) e as usa para pesquisar o conteúdo ou compartilhar suas impressões, pelo Facebook, pelo WhatsApp ou pelo site do canal.

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Disse a VEJA Christian Kurz, v­­ice-presidente da Viacom, que coordenou a pesquisa: “Os aparelhos são apenas veí­culos de distribuição. Uma grande série de TV continua a ser uma grande série de TV, mas agora com a possibilidade de ter sucesso seja por qual tela for. O porém é que o espectador tem de

achar onde está o que quer ver”. Ou seja, o que se procura ainda é o mesmo, uma história de qualidade, como as que são produzidas pela Viacom. O que mudou é a forma de criar, distribuir e fazer propaganda. Na construção dos roteiros já se usam algoritmos capazes de identificar preferências dos espectadores que possam servir de base para elaborar roteiros. Foi como o Netflix chegou à fórmula de sucesso de uma de suas principais joias, o drama político House of Cards. O software de VOD da empresa acumulou dados de seus mais de 50 milhões de usuários, em quase sessenta países, para definir que o

tema político, o ator Kevin Spacey como protagonista e David Fincher como diretor eram elementos certeiros, queridos pelos assinantes. O algoritmo foi matematicamente preciso.

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A tecnologia de streaming começou a ascender com a música, na virada dos anos 2000, e depois com os vídeos, pendurados no YouTube, em 2005. Mas sua trajetória é mais antiga. Há estudos sobre como rodar arquivos de vídeos on-line desde os anos 90. Os primeiros testes práticos foram feitos em 1994, na Inglaterra. Um experimento de uma fornecedora de TV a cabo levou conteúdo on demand de dois canais para 250 residências de Cambridge. O projeto faliu porque as emissoras envolvidas desistiram de se esforçar para criar conteúdo apenas para um punhado de pessoas (pelos limites técnicos, não era possível passar disso). Em razão das dificuldades impostas pela tecnologia, a exemplo do alto custo e da lentidão da internet, o streaming não chamou a atenção dos produtores de conteúdo e, como decorrência inevitável e ruim, começou a vingar um mercado paralelo. O da pirataria.

Proliferaram sites clandestinos, principalmente de música, que ofereciam o­n­line, de graça, o que era vendido off-line. Em efeito contínuo, a geração que nasceu plugada não mais se dispôs a pagar por produtos que pudessem ser digitalizados. No começo, eram músicas, games e filmes que levavam dias para ser baixados (por isso, muitos continuaram a pagar off-line para não esperar). Com o aumento da velocidade da rede, o leque de ofertas não parou de crescer. Na nuvem, filmes e músicas competem agora por espaço em servidores da web com sites, posts de redes sociais, documentos guardados no Dropbox. E, em vez de fazer o download, é até possível acessar a pirataria por streaming, em sites como o Popcorn Time, imitação ilegal e popular do Netflix.

Ao contrário do que pensavam empresários da era pré-internet na virada dos anos 2000, a melhor resposta à pirataria não foram os processos judiciais que produtoras passaram a mover contra hackers. Na maioria sem sucesso, visto que os piratas sumiam no anonimato da internet. O contra-ataque veio no livre mercado, com a criação de serviços que começaram a fornecer, gratuitamente ou mediante assinaturas baratíssimas, bibliotecas imensas de filmes e músicas de alta qualidade e que não engasgam na hora do play. Quem se lembra de como era ouvir música antes do iTunes e do Spotify? Ou de juntar a família para uma sessão doméstica de cinema sem o Netflix ou o Google Play?

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A geração que não aceitava pagar começou então a fazer concessões. Vale tirar o dinheiro do bolso se o conteúdo estiver disponível para um smart­phone ou um tablet a qualquer momento, sobretudo se for barato. Os números comprovam o sucesso. A cada minuto são enviadas 300 horas de novos vídeos para o YouTube, com espaço cada vez maior para produções profissionais como as do popular canal brasileiro de humor Porta dos Fundos. Nesse caso, em que tudo é de graça, o faturamento do Google (dono do YouTube) e dos produtores vem dos anúncios. Nos Estados Unidos, 35% do tráfego de internet é dominado pelo Netflix. São pessoas que aceitam pagar mensalmente, ainda que pouco, por conteúdo bom.

O crescente mercado digital de música
O crescente mercado digital de música (VEJA)

Consumidores, distribuidores e produtores que se adaptaram a essa lógica festejam. Mesmo que a pirataria não tenha sido vencida por completo, o que jamais ocorrerá, um novo público, antes adepto dos arquivos ilegais, aceita pagar. Mas, como sempre há um lado que sai perdendo, uma parcela de artistas se queixa do streaming. O grupo, composto de poucos representantes, mas todos com peso suficiente para causar estardalhaço, defende a tese de que os artistas não estão sendo bem pagos. Para lucrar 1 260 dólares, segundo cálculos das entidades de direitos autorais dos Estados Unidos, um músico precisa vender 457 CDs, ou tocar mais de 1 milhão de vezes suas faixas no Spotify. A conta, aparentemente injusta, fez com que estrelas como a americana Taylor Swift se posicionassem contra o streaming. Ocorre, porém, que o faturamento com CDs só é maior para donos de discos de platina, que vendem centenas de milhares de álbuns. E apenas em curto prazo. Bandas menores atingem mais facilmente 1 milhão de views do que os 457 CDs. Até porque, diferentemente do que ocorre com discos, quando um fã ouve uma faixa pela segunda, terceira, centésima vez, o dinheiro de direito autoral continua a cair na conta. O CD pode ser ouvido quantas vezes for que o pagamento permanece único. Por isso, o Spotify já concede na Europa 13% a mais de valores em direitos autorais do que o iTunes, loja virtual da Apple que se encaixa no modelo antigo, de álbum por álbum, como nas lojas físicas, ou música por música.

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O elemento comportamental perturbador para os mais velhos é poder ouvir uma música ou ver um filme sem tê-los fisicamente, sem possuí-los. É um jogo que vai além do embate econômico em torno do preço pago pelos serviços ou da recompensa aos artistas. Dos rolos de filmes negativos do início do século XX ao streaming de vídeo, dos gramofones ao Spotify, a tecnologia é um espetacular e invisível apêndice – toda novidade é filha de seu tempo, sustentando a informação de que necessitamos. A nuvem digital faz valer, cada vez mais e mais, uma máxima do celebrado ensaio “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, do filósofo alemão Walter Benjamin, de 1936: “A obra de arte, por princípio, foi sempre suscetível de reprodução”. Benjamin pensava especialmente no cinema, que mal começara a falar, na fotografia, mas nada que se compare ao que construiu o filho de um mecânico de automóvel com uma cuidadora de crianças, o sueco Daniel Ek, de apenas 32 anos, que inventou o Spotify. Não por acaso, o serviço nasceu na Suécia, onde 90% das músicas digitais são reproduzidas por streaming. A Suécia é o mundo amanhã. Não somos donos de nada, topamos pagar, e pagar de novo se for o caso, mas trocamos prateleiras por nuvens de armazenamento para não lotar o smartphone.

Com reportagem de Gabriela Neri

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