Como a Alemanha se tornou o novo país do futebol
O tetracampeonato não foi conquistado por acaso. Para se tornar um celeiro de craques, o país transferiu suas melhores qualidades para dentro do gramado: eficiência, autoconfiança, atração de talentos e muito espírito de equipe
No quente verão da capital alemã, oitenta crianças entre 9 e 13 anos aproveitam as férias escolares para jogar futebol. Passam sete horas por dia com a bola em aulas de passe, drible e chute a gol. A atividade, que acontece em uma pequena escolinha de futebol, tem lista de espera e é apoiada pela Associação Alemã de Futebol (DFB, na sigla em alemão), o equivalente à Confederação Brasileira de Futebol. “No passado, os meninos que treinavam aqui vestiam o uniforme da seleção brasileira e o de times espanhóis e ingleses. Agora, a maioria usa camisas da seleção nacional e das equipes locais”, diz o treinador Adrian Schedlinski. Em Munique, a 585 quilômetros da capital, outro grupo de meninos não se intimida com a chuva torrencial do fim da tarde no centro de treinamento do Bayern, o atual campeão do mundo. Cumprem com afinco todas as ordens do treinador ao longo de duas horas. “Não cancelamos aulas por causa do mau tempo, e o comprometimento deles é sempre total”, diz o treinador alemão Heiko Vogel. As cenas captadas pela reportagem de VEJA mostram com clareza aquilo que o mundo constatou nos jogos da última Copa do Mundo: a Alemanha é o novo país do futebol. O epíteto que antes era automaticamente associado ao Brasil por sua fartura de craques e de títulos mundiais mudou de dono. As seguidas vitórias que os alemães obtiveram nos estádios brasileiros têm ao menos duas explicações. A primeira é o elevado investimento no treinamento de crianças e jovens nos últimos catorze anos. A segunda está na transferência, que ocorreu de forma natural, das melhores qualidades da nação para dentro dos campos. Os jovens alemães são tão ou mais eficientes que seus pais, mas já não padecem daquela inação provocada pelo sentimento de culpa decorrente dos crimes cometidos nas duas grandes guerras do passado. São orgulhosos de seu país, que exporta bens de alta tecnologia e também um modelo de democracia rica e bem-sucedida, baseada em uma sociedade diversificada que valoriza o interesse coletivo.
É uma relação de ida e volta. Da mesma maneira que o país investiu no futebol, o esporte também deu sua contribuição. Nas últimas semanas, a bandeira com as listras preta, vermelha e amarela voltou a ser hasteada em carros e janelas. Para muitas crianças, a imagem está mais associada ao futebol do que ao país. Tais demonstrações não eram frequentes até bem pouco tempo atrás. “Havia a preocupação de que qualquer sinal de patriotismo poderia representar uma volta ao chauvinismo do III Reich. Isso não existe mais”, diz o historiador Arnd Bauerkämper, da Universidade Livre de Berlim. Quando a ameaça parece voltar à tona, é mais pela dor de cotovelo daqueles que não conseguem obter as mesmas conquistas. Não há como acusar os alemães de ignorarem ou esconderem seu passado. “Desde o início dos anos 1970, a história é um tema central no currículo de todas as escolas. Há um material didático de alta qualidade, que facilita a construção de uma consciência nos alunos”, diz o especialista em estudos alemães Rüdiger Görner, professor da Universidade de Londres. Em 1954, na primeira Copa do Mundo vencida pela Alemanha Ocidental, a celebração nas ruas levou o jornal inglês Daily Mirror a fazer uma ligação entre a vitória esportiva e um suposto renascimento do nacionalismo alemão. O francês Le Monde relacionou o título com uma política de rearmamento do chanceler Konrad Adenauer. A Copa de 2006, realizada na Alemanha, deixou o ar mais leve. O então país-sede provou que estava recuperando a pobre parte oriental, que padeceu sob a esfera soviética, e se firmava como um povo unido (desde a reunificação, em 1990, a renda per capita da antiga Alemanha Oriental dobrou). O tetracampeonato neste ano deu um passo além. Trouxe consigo o desejo de exportar as boas práticas domésticas para o resto do mundo, o soft power alemão.
Poucos países desenvolvidos têm sido tão bem-sucedidos em sua política de imigração quanto a Alemanha, o terceiro em número de imigrantes no mundo. O fenômeno podia ser facilmente constatado nos sobrenomes estampados nas camisas do time campeão mundial. Sami Khedira tem pai tunisiano. Os avós e o pai de Mesut Özil nasceram na Turquia. Jérôme Boateng tem raízes em Gana. Lukas Podolski e Miroslav Klose nasceram na Polônia, mas foram naturalizados alemães. A primeira onda de imigrantes na Alemanha ocorreu ainda nas décadas de 60 e 70, com a chegada dos turcos. Eles ajudaram a suprir a demanda por mão de obra, mas viviam em bairros separados nas grandes cidades. Em 2000, uma lei facilitou que filhos de imigrantes obtivessem a cidadania alemã. Cinco anos depois, quando a chanceler Angela Merkel assumiu o cargo, a fronteira nacional ficou ainda mais porosa. Obrigado a atrair talentos para sustentar seu crescimento econômico, o país passou a ser procurado por imigrantes qualificados, como engenheiros e cientistas. Quase um em cada três imigrantes entre 20 e 65 anos que entraram na Alemanha na última década tem nível superior. Entre os alemães nativos, menos de 20% têm diploma.
Quando os alemães censuram publicamente outros países, isso se dá principalmente pela falta de espírito coletivo dos demais. É comum que eles se escandalizem com gregos e espanhóis, que trabalham pouco, usufruem gordos benefícios sociais e se aposentam cedo. A conta, claro, não fechou, e foi o estopim da crise europeia. Para um alemão, cada um deve viver de acordo com seus próprios meios. Não por acaso, a palavra para “dívida”, Schuld, é a mesma para “culpa”. Quando aceitaram medidas de austeridade sem muita resistência, os alemães o fizeram em nome do interesse coletivo. É um pensamento em que o individualismo tem pouco espaço – tal como dentro do time. Seus sindicatos têm tradição de negociar. Preferem realizar greves breves para não perder a simpatia do público. O número anual de dias perdidos com greves na Alemanha é de dezesseis para cada 1 000 funcionários, contra 150 na França e 65 na Espanha. Cientes dos percalços enfrentados pelos patrões, os alemães aceitaram aumentos salariais que mal cobriam a inflação em troca da garantia do emprego. “Essa postura solidária reduziu os custos dos empregadores, o que levou a um aumento substancial da competitividade econômica nacional”, diz o sociólogo e cientista político Werner Eichhorst, pesquisador do Instituto para o Estudo do Trabalho, em Bonn. Em exportação de produtos de alta tecnologia, a Alemanha só perde para a China, que tem uma população dezesseis vezes maior.
A chanceler Angela Merkel, que completou 60 anos em meados de julho, é um dos melhores símbolos desse novo país. Ela cresceu em Berlim Oriental. É considerada uma Ossi, como eles dizem, assim como o presidente Joachim Gauck. Integrante do partido União Democrata-Cristã, Merkel está no governo há nove anos, sempre fazendo alianças. Na política externa, o comportamento é parecido. Quando ela se mostra mais firme, geralmente é para denunciar autocracias em gestação ou violação das leis internacionais. “A Alemanha de hoje quer ser vista como um país mediador, não como um agressor”, diz Rüdiger Görner, professor da Universidade de Londres e especialista em cultura alemã. “É uma democracia com um poderoso senso de responsabilidade coletiva.” Talvez não fosse o país do futebol se não tivesse tanto para mostrar fora de campo.
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