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As lições do set argentino, mais para Borges que Hollywood

Em passagem pelo país para comandar um workshop de roteiro no Rio, o diretor Daniel Burman, um dos expoentes do chamado novo cinema argentino, fala ao site de VEJA sobre a influência da literatura em sua produção, dá dicas para escrever boas histórias e conta das parcerias que vem firmando com produtoras no Brasil – parcerias que podem ser interessantes para nós

Por Maria Carolina Maia Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 13 out 2013, 08h27

“Acredito que não haja outro tema no cinema que não seja a família. Todos, sejam elas marcadas pela ausência ou pela presença, tivemos relações com um pai e com uma mãe, que nos definiram e definiram também como somos com os outros.”

Na segunda metade dos anos 1990, Brasil e Argentina entraram, ambos, em uma nova fase de suas produções cinematográficas. Aqui, após anos de dominação das pornochanchadas, estreou em 1995 Carlota Joaquina, de Carla Camurati, longa tomado como marco do que se rotulou de “retomada”, período em que o cinema nacional voltou a dar bons frutos. Três anos depois, estreava na Argentina Pizza, Cerveja, Cigarro, de Adrián Caetano e Bruno Stagnaro, filme considerado a faísca do chamado “novo cinema argentino”, que, embora com um toque mais pessoal de seus diretores, não chegava a representar uma virada radical em termos de temática — longas como A História Oficial (1985), de Luis Puenzo, sobre o sequestro de filhos de presos políticos durante a ditadura, já tocavam em delicadas questões nacionais, por exemplo. O maior diferencial dessa produção em relação à que se fazia antes, nos anos 1980, está na sua circulação internacional. O cinema argentino passou a frequentar festivais e sair deles munido de elogios e troféus. Um dos mais premiados diretores dessa geração, o portenho Daniel Burman, que esteve no Brasil esta semana para dar aulas de roteiro em um evento de audiovisual no Rio de Janeiro, levou mais de vinte.

Burman, de filmes como O Abraço Partido (2004) e Ninho Vazio (2008), faz parte de um grupo de bons contadores de história, que se destacam por ter, muitas vezes, mais influência da literatura do que do cinemão de indústria que se faz em Hollywood – embora a ele ninguém fuja. “Gosto muito de ler e de reler Borges, é um autor que descobrimos mais à medida que retornamos a seus textos ao longo dos anos”, diz. “Penso que sou mais influenciado pela literatura e pela vida cotidiana do que pelo cinema em si.”

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Nas aulas de roteiro que dá, ele procura fazer os alunos enxergarem seus personagens da forma mais humana – mais aproximada – possível. E buscar o que faz parte do inconsciente coletivo, conceito trabalhado pelo psicanalista suíço Carl Gustav Jung. “A ideia não é ter uma fórmula para copiar os filmes americanos, mas uma forma para ver nossas histórias em um amplo painel e entender por que algumas delas continuam a nos fascinar depois de cem, duzentos anos, e outras, pelo contrário, não interessam a ninguém.”

Além de ensinar roteiro, Daniel Burman aproveitou a passagem pelo Rio para avançar em suas parcerias com a produtora carioca Total Filmes, com que acabou de rodar, sem setembro, O Mistério da Felicidade, com Claudia Ohana no elenco, e tem outros dois projetos para 2014. Confira abaixo a conversa de Burman com o site de VEJA:

A Argentina tem criado nos últimos anos um cinema considerado de grande qualidade. E é também um país de tradição literária forte. Na sua opinião, o pendor argentino para a literatura favorece o surgimento desse cinema de arte? Sem dúvida, a literatura tem influído muito na formação dos diretores argentinos. Meu filme Dois Irmãos é uma adaptação do romance de Sergio Dubcovsky. Eu leio bastante, mas agora tenho três filhos que preciso colocar para dormir e fazer escovarem os dentes, meu tempo é um pouco menor (risos). Gosto muito de ler e de reler Borges, é um autor que descobrimos mais à medida que retornamos a seus textos ao longo dos anos. Gosto também muito de Cortázar e do brasileiro Moacyr Scliar, ele é extraordinário, O Centauro no Jardim é uma das melhores obras da literatura latino-americana. Mas também sou atraído pelos Irmãos Grimm, dos clássicos de infância e da mitologia, de Joseph Campbell, um grande mitólogo americano, o livro de poemas de Leonard Cohen. Tenho um gosto absolutamente eclético. Creio que essas várias influências ajudam a criação de mundos diferentes. Penso que sou mais influenciado pela literatura e pela vida cotidiana do que pelo cinema em si.

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Você escreveu todos os filmes que dirigiu, e suas histórias parecem literárias. Acho que é muito importante para um diretor não refletir sobre as suas influências. Ter consciência de todos os mecanismos que envolvem a criação pode fazer com que o processo se transforme em algo instrumental. Prefiro uma amnésia, é preciso manter uma zona de mistério tanto no casamento como na amizade e na criação.

Você está no Brasil para comandar um workshop de roteiro. Quais as suas lições principais? Eu trabalho muito com as estruturas psicopatológicas dos personagens. Procuro dotá-los de um perfil psicológico que nos ajude a entender que posição assumem diante dos outros e diante de si mesmos, como sujeitos que são. Assim como há pessoas com posição melancólica ou narcisista frente à vida, também há personagens assim, que podem sofrer mudanças, dentro de um filme, a partir dessa postura inicial. É preciso entender nossos personagens através de sua estrutura psicopatológica e também fazê-los viajar na história e transformá-los da maneira adequada. É preciso entender também o inconsciente coletivo que habita nossos sonhos há mais de 2.000 anos – ou mais de 5.000, no caso dos judeus. A ideia não é ter uma fórmula para copiar os filmes americanos, mas uma forma para ver nossas histórias em um amplo painel e entender por que algumas delas continuam a nos fascinar depois de cem, duzentos anos, e outras, pelo contrário, não interessam a ninguém. Não é apenas uma questão do marketing usado para vender essas histórias, mas de que elas habitam o inconsciente coletivo e despertam identificação por parte do público.

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É por isso que seus filmes todos falam de relações familiares? Acredito que não haja outro tema no cinema que não seja a família. Todos os filmes são filmes de família porque todos os personagens são consequência da estrutura das relações que marcaram a sua infância. Não podemos ignorar a nossa infância, não há como. Todos, sejam elas marcadas pela ausência ou pela presença, tivemos relações com um pai e com uma mãe, que nos definiram e definiram também como somos com os outros.

Você escreveu todos os filmes que dirigiu. Você busca sempre um cinema de autor? Eu busco contar uma história que tenho na cabeça e quero desesperadamente compartilhar, como um garoto que tira nota boa na escola e corre para casa para contar à mãe. Quero contar histórias a todos, mas a primeira pessoa que as lê é a minha mulher. Se o roteiro prende a atenção dela, eu sigo em frente.

Você nunca pensou em atuar? Não, tenho muito respeito pela profissão de ator, muitíssimo, mas já tenho bastante trabalho como autor, produtor e diretor.

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https://youtube.com/watch?v=BSQQB6PG_vQ

A Sorte em Suas Mãos, seu último filme lançado, é uma comédia romântica. Ele sinaliza uma mudança na sua produção? Bom, há um certo pudor em se expressar os sentimentos e em falar de amor. Eu fiz 40 anos em agosto e nessa idade a perspectiva que temos da vida muda um pouco. Percebemos que, diante das perdas que sofremos ao longo da vida, cada vez mais próxima da morte, não há nada mais atrativo que o amor. Com o tempo, as contradições, ambiguidades e dúvidas que nos atravessam, me torno menos resistente aos sentimentos.

Você está rodando um filme agora, O Mistério da Felicidade, em parceria com a produtora carioca Total Filmes. Ele é sobre sentimentos? Sim. É a minha primeira parceria com a produtora brasileira Total – A Sorte em Suas Mãos foi feito com a Gullane Filmes. O Mistério da Felicidade é um filme sobre pactos que perdem a validade, mas aos quais continuamos fiéis, pelo compromisso com os sentimentos que os originaram. Não é um longa sobre o fim de um casamento, mas sobre a rachadura na relação de dois amigos de longa data que são sócios e têm um acordo muito particular, posto em xeque, em um certo momento, pela mulher de um deles. A partir daí, o longa vive uma tensão entre lealdade e fidelidade – a lealdade a um pacto antigo e a fidelidade a certos sentimentos. O filme fala sobre esses pactos que continuam em vigor, mas no fundo estão vazios, porque já não há as emoções que os originaram. Muitas crises em casamentos funcionam dessa maneira. O longa foi filmado no Rio de Janeiro, para onde esses dois amigos argentinos viajam por causa de uma aposta que fizeram quando jovens, e tem a atriz Claudia Ohana no elenco. Deve estrear no primeiro semestre de 2014.

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Esta é a sua segunda coprodução com o Brasil. Há outras parcerias em vista? Sim. Dois outros projetos em desenvolvimento com a Total Filmes, Love.com, sobre a influência da vida virtual sobre a vida real e por que nos entregamos tanto à vida virtual com tantos prazeres que há na vida real, e outra que de alguma maneira, mais pela temática, é uma continuação de O Abraço Partido (2009). Estou achando ótimo. Filmar em outro país, e com o apoio criativo de outras pessoas, é como desfrutar de uma festa na casa dos outros. Eu não preciso organizar a festa, comprar a comida, arrumar a casa.

Por que fazer uma comédia romântica? Há um desejo de ser mais comercial e atrair mais público? Não penso em termos de marketing. Eu queria de fato fazer uma comédia romântica, é um gênero em que os personagens parecem reais, são bastante verossímeis. No cinema, podemos mostrar o cinema de modo diferente da TV ou da publicidade. O amor assume formas diferentes de acordo com a idade e o tempo, e cada um ama como pode. O imperfeito não pode querer algo perfeito.

O cinema que se faz em Pernambuco tem semelhança com o cinema argentino, por ter como foco principal contar boas histórias, muitas delas bastante simples. Você acompanha o cinema que se faz no Brasil? Muita gente já me disse isso, preciso ver esses filmes. Esta é uma pendência que temos na Argentina. Temos pouco acesso a filmes brasileiros e acabamos conhecendo os diretores brasileiros mais internacionais e perdendo de acompanhar os que estão surgindo. Dos que vi, gostei muito de O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, do Cao Hamburger.

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