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Onde a ajuda pública não chegou, a solução vem das mansões montanhas acima

No Vale do Cuiabá, atingido duramente pelas chuvas, empresários e endinheirados se reúnem para reconstruir o lugar

Por Manuela Franceschini, de Itaipava
20 jan 2011, 11h13

“A prefeitura está metendo os pés pelas mãos. Ela não criou uma logística que funcione. Todos os empresários da região estão mobilizados. Temos voluntários, donativos, carros, tudo, mas eles não deixam chegar até onde precisa. O estado não pode fazer sozinho, nem a gente”, diz Milton Tesseroli, que cedeu dez Land Rovers para ajudar no resgate

Um cedeu a casa, o heliponto e seus 10 carros Land Rover; a segunda ajudou a reconstruir a rede elétrica e coordena um censo de mortos e desaparecidos. Os outros emprestaram caminhões, tratores e escavadeiras que abrem caminho. A reconstrução do Vale do Cuiabá, município de Itaipava, na serra do Rio de Janeiro, passa pelas mãos e bolsos de Milton Tesserolli, Maria Cecília Almeida e Silva e outros empresários, endinheirados e famílias tradicionais da região. Onde a ajuda pública não chegou, a solução veio das mansões montanhas acima. Nessa história, rio abaixo, tudo é silêncio, tristeza e descaso.

O Vale quase engana. O rio corre tranquilo, as árvores estão carregadas de flores roxas, passarinhos cantam, o sol bate nas folhas muito verdes. Mas a calmaria só aumenta a aflição. Há tanto entulho, lama, lixo. Não se ouvem vozes, não tem conversa, é só o barulho da vassoura raspando o chão, da respiração ofegante, da bota carregando barro. Das casas ribeirinhas só se vê o telhado, postes caíram e a quantidade de madeira espalhada é inacreditável. Se sobrasse alguma dúvida de que vidas foram reviradas, as evidências gritariam: há roupas, espelhos, móveis, sofás, geladeiras, bonecas, bicicleta, antenas parabólicas. E silêncio. Elas ainda estão reviradas.

Chuvas causam destruição e mortes na Região Serrana do Rio de Janeiro. Na foto, o morador Sérgio Amaral, do Vale do Cuiabá, bairro devastado no município de Itaipava – 18/01/2011
Chuvas causam destruição e mortes na Região Serrana do Rio de Janeiro. Na foto, o morador Sérgio Amaral, do Vale do Cuiabá, bairro devastado no município de Itaipava – 18/01/2011 (VEJA)

O trator que passa abrindo caminho na frente da casa de Sérgio Amaral, morador da rua Ministro Salgado Filho, a primeira do Vale, foi contratado por Tesserolli. Até o final da última semana, dias após a tragédia das chuvas, o acesso ainda era mínimo. Na casa de Amaral, a água entrou um metro e meio, saiu e deixou muita sujeira. Ele limpa tudo sozinho, tirando a pá a terra molhada. Mora lá há mais de 50 anos e nunca viu coisa igual – nem tanta lama, nem tanta tristeza. Mas não há raiva, voz alta, revolta. “Estou pegando donativos ali na escola, lá em cima, estão ajudando muito, muito. Não posso reclamar”, diz.

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No caminho até a igreja, mais postes caídos, mais destruição, ainda mais entulho. Mais escavadeiras. Mais silêncio. A expressão ‘mar de lama’ caberia como uma luva. O rio, que era estreito, como mostra uma ponte retorcida, mais do que dobrou de tamanho. Foi abrindo tudo, tomando espaço. “Onde fica a escola?”, perguntam. Mário Sérgio Cabral da Silva, que passa pela rua, responde: “Depois disso tudo, nem sei onde está”. Perdeu a casa, morava na beira do rio. “Só sinto falta de ter uma casa, sabe?”. Está na casa dos avós. Tem 17 anos.

Cágado resgatado com vida seis dias depois da enchente que arrasou o Vale do Cuiabá, em Itaipava: alento para as equipes que trabalham sem parar – 18/01/2011
Cágado resgatado com vida seis dias depois da enchente que arrasou o Vale do Cuiabá, em Itaipava: alento para as equipes que trabalham sem parar – 18/01/2011 (VEJA)

Chorar os mortos – É na escola Santa Terezinha que Maria Cecília Almeida e Silva organiza as doações que vão para a cidade inteira. O “ajudando muito” que Amaral disse na beira do rio se refere também a ela. Maria Cecília é de uma família tradicional da região, há mais de 60 anos no Vale. Seu irmão Eduardo Gouvêa Vieira é presidente da Firjan (Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro) e tem contribuído fortemente com a reconstrução do lugar e também através do SESI, enviando professores e educadores. Maria Cecília, que já encabeçava projetos ambientais e educacionais na cidade, organizou um censo para contabilizar os mortos, os desaparecidos e os necessitados. Como quase todas as crianças da região estudavam lá, as pistas são elas. Vão mapeando a família de cada uma para saber o que aconteceu. “Precisamos reconstruir a vida, mas, também, chorar nossos mortos. Esses primeiros dias são de perplexidade”, diz.

Perto da escola, começa-se a ver alguma movimentação de exército, batalhão de choque e policiais organizando o trânsito na rua estreita. “Olha as botas deles, limpinhas. Ninguém ajuda a limpar as casas, e isso é uma questão de saúde pública”, reclama do parapeito da Igreja Metodista o pastor Daniel Brum, olhando o comboio passar pela rua de terra. Ele veio ajudar o pastor Fabrício Lopes, que está abrigando 25 pessoas. Segundo Lopes, 97% das doações são particulares. “A grande realidade é que as pessoas ricas, os empresários da cidade, estão mais preocupados que o prefeito”, diz.

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Maria Cecília cita as famílias Cortazio, Silveira e Pinheiro como atuantes na causa. Tesserolli, que já atravessou o Saara e a Amazônia em seus Land Rover, por esporte, diz que outros amigos proprietários de carros grandes e caminhões também têm ajudado. Tesserolli abastece seus carros com cestas básicas e sai pela cidade, mas enfrenta resistência. “A prefeitura está metendo os pés pelas mãos. Ela não criou uma logística que funcione”, afirma. “Todos os empresários da região estão mobilizados. Temos voluntários, donativos, carros, tudo, mas eles não deixam chegar até onde precisa. O estado não pode fazer sozinho, nem a gente”. O maior problema no Vale ainda é a dificuldade de acesso. Por isso, policiais montaram postos na estrada para avaliar quem pode e quem não pode passar.

Despreparo – Alguns moradores que deixam suas casas para pegar donativos não conseguem mais voltar. “A polícia aqui faz cara feia para as pessoas, diz que não passa e acabou. Isso é absolutamente constrangedor, de uma total falta de preparo”, diz Tesserolli. “Essa gente tem que ir pro Morro do Alemão pegar bandido, não sabem ajudar pessoas. Ao contrário dos bombeiros, que têm sido verdadeiros heróis.”

O elogio se estende ao sargento Drumond. Na tarde da última terça-feira, ele atendeu ao pedido de um grupo de moradores e juntou-se ao operador de escavadeira Eduardo Moreira, contratado por um empresário. Na madrugada da enxurrada, foram ouvidos gritos e pedidos de socorro vindos de algumas árvores. Nas poucas que sobraram, mais de três metros de lama, galhos, outras árvores, entulho. Por três horas, Drumond esteve com as mãos na cintura e o olhar atento a cada garfada dada na terra. Moreira dirigiu como se a garra fosse um terceiro braço, com a habilidade de quem faz isso há 32 anos. “Mas nunca procurei um corpo. Primeira vez.”

Em uma dessas escavadas, o alívio de encontrar o que se procurava, e tristeza. Surgiu o corpo de uma adolescente agarrada a um tronco de árvore. Era Kelly, por quem os vizinhos procuravam. “Estamos preparados para isso, mas como ser humano a gente sente demais. Vemos no rosto das pessoas a tristeza por ter perdido alguém, a angústia de ainda não ter encontrado”, diz. Enquanto procuravam o restante da família, alguma alegria. “Tá viva! Tá viva!”. Um cágado, sobrevivente após sete dias debaixo da terra. Alguma vida, afinal.

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