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Traficantes de elite

A ascensão e a queda da bilionária família Sackler, acusada de provocar uma epidemia de viciados em um comprimido à base de morfina nos EUA

Por Kátia Mello e Jana Sampaio
Atualizado em 30 jul 2020, 19h50 - Publicado em 12 abr 2019, 07h00

É comum que empresas sejam processadas por danos causados à sociedade. Até um ramo industrial inteiro já passou por essa experiência, em 1998, quando os grandes fabricantes de cigarro, soterrados em uma avalanche de ações, fecharam um acordo na Justiça americana para pagar 246 bilhões de dólares em indenizações por doenças e prejuízos causados pelo fumo. Bem mais raro é que os próprios donos do negócio sejam responsabilizados, mas é justamente isso que está acontecendo agora com a bilionária família Sackler, proprietária do laboratório Purdue Pharma. Até outro dia, o sobrenome era sinônimo de filantropia e apoio às artes, com um histórico de doações na casa dos seis ou sete dígitos a museus, universidades e institutos de pesquisa mundo afora. Nos últimos tempos, o vento virou: Sackler é o nome associado ao potentíssimo analgésico OxyContin, à base de morfina, apontado como o vilão número 1 da epidemia de mortes por overdose de opiáceos que varre os Estados Unidos e que, em duas décadas, tirou a vida de 200 000 pessoas, contando só os medicamentos de venda autorizada.

Discretíssimos na vida pessoal, os Sackler só costumavam ficar em evidência nas placas de centros universitários e na entrada de salas de museus mantidos por suas doações, como a Ala de Antiguidades Orientais do Louvre, em Paris, e o Templo de Dendur, no Metropolitan Museum of Art, em Nova York, um presente do Egito que foi remontado pedra a pedra no museu, ou ainda uma biblioteca na venerada Universidade de Oxford, na Inglaterra, e um instituto de pesquisa na Universidade Columbia, em Nova York. Theresa, mecenas da segunda geração dos proprietários da Purdue Pharma, mora em Londres, participa das decisões no Victoria & Albert Museum e, por seu apoio às artes, recebeu da rainha Elizabeth o título de dama. Mora na mansão de nove quartos que pertenceu ao ator Hugh Grant, no elegante bairro de Chelsea. Uma sobrinha dela, Elizabeth, durante anos fez parte do conselho do Museu do Brooklyn, em Nova York, onde a família de imigrantes judeus russo-portugueses primeiro morou.

A empresa foi fundada por Arthur M. Sackler, que já havia feito carreira tanto acadêmica, como psiquiatra, quanto no marketing de medicamentos — um setor que ele revolucionou ao produzir anúncios atraentes para vender pílulas e contratar médicos para exaltar os benefícios de tranquilizantes como Valium e Librium. Em 1952, em sociedade com os irmãos Mortimer e Raymond, adquiriu um pequeno laboratório que se transformaria no gigante Perdue Pharma. A virada financeira viria em 1995, quando a FDA aprovou a comercialização do OxyContin, analgésico à base de oxicodona, um opioide desenvolvido por cientistas alemães em 1916 e usado na fórmula de diversos remédios contra a dor. O pulo do gato do novo produto era ser uma pílula de oxicodona pura dotada de um dosador que liberava a substância aos poucos no organismo — uma forma de disfarçar o potencial viciante do remédio. A essa altura, Arthur Sackler, o fundador do laboratório, já tinha morrido, mas seus irmãos, Mortimer e Raymond, compraram a parte da filha de Arthur, Elizabeth, e tocaram o projeto — projeto que a própria Elizabeth qualificou como “moralmente abominável”.

A campanha de lançamento do OxyContin e as ações publicitárias que se seguiram tinham um propósito claro: quebrar a resistência dos médicos a receitar opioides, sabidamente viciantes. Mas os vendedores garantiam que o OxyContin era diferente. Sua liberação gradativa reduzia a quase nada o risco de dependência. Munidos de depoimentos e estudos supostamente científicos, os vendedores convenciam os médicos de que o comprimido era tão bom que podia ser receitado não apenas em casos de dores crônicas e tratamento pós-operatório mas também em lesões esportivas, fibromialgia, artrite e até dores musculares. Os médicos que aumentavam o número de prescrições ganhavam viagens pagas a congressos e financiamento de pesquisas. As duas doses diárias recomendadas, propagandeava a Purdue Pharma, eram mais seguras que altas doses de anti-inflamatórios.

“Esse tipo de medicamento, além de abrandar a dor, proporciona uma sensação de despreocupação e bem-estar, o famoso ‘barato’. Mas com o tempo a pessoa precisa de cada vez mais remédio para obter o mesmo efeito, até que uma dose tóxica leva à morte”, explica o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, coordenador-geral do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). No Brasil, o OxyContin e seus similares são medicamentos controlados. Uma pesquisa de abril de 2018 registra um aumento de 465% na venda desses remédios no país entre 2009 e 2015. Mesmo com esse avanço, o Brasil ainda está muito distante da dramática realidade dos Estados Unidos, onde, estima-se, há 2,6 milhões de viciados em opiáceos.

DISTÂNCIA - Protesto no vão do Guggenheim: o museu de Nova York deixou de receber doações dos Sackler (./The New York Times/Fotoarena)

A campanha da Purdue Pharma, considerada a mais intensa já realizada por uma empresa farmacêutica, conseguiu o impensável: apagou a marca maldita de um opioide nos Estados Unidos — a ponto de o país reunir até hoje o maior contingente de viciados em remédios. Poucos anos após o lançamento do OxyContin, as vendas explodiram. Entre 1995 e 2001, o medicamento faturou 2,8 bilhões de dólares, 90% da receita total do laboratório. Os outros remédios à base de ópio embarcaram no sucesso e, em duas décadas, o número de prescrições cresceu 222%. A facilidade de acesso gerou a legião de viciados. E resultou em uma mortandade: há cidades na costa atlântica dos EUA em que todos os moradores disseram conhecer alguém que sofreu overdose de OxyContin ou seus similares.

O comprimido estava no coquetel que matou o ator Heath Ledger em 2008. Michael Jackson e Prince também eram dependentes, embora tenham morrido por excesso de outro opioide, o fentanil. Apenas em 2012, foram contabilizados mais de 282 milhões de receitas de analgésicos como OxyContin, Vicodin e Percocet, o que representa quase um frasco do remédio para cada cidadão americano. À medida que as overdoses aumentavam, Richard, o filho de Raymond que assumiu a empresa no lugar do pai, insistia na tecla de culpar os usuários pelos problemas. “Temos de martelar a responsabilidade dos dependentes de todas as formas possíveis”, escreveu em um e-mail em 2001. Ele se afastou em 2003 (permaneceu no conselho por mais dez anos), e desde então nenhum Sackler exerceu o comando direto do laboratório, embora vários deles tenham funções executivas.

MUNDO DAS ARTES – o câmpus da Universidade Harvard, onde a família dá nome a um prédio: tudo começou com um projeto “moralmente abominável” (Rick Friedman/.)

Os Sackler ganharam rios de dinheiro — a Forbes avalia o patrimônio da família em 13 bilhões de dólares, à frente da fortuna dos Rockefeller. Em 2007, para se livrar de vários processos por “enganar o público sobre o risco de vício em OxyContin”, a Purdue Pharma desembolsou 600 milhões de dólares, um dos maiores acordos farmacêuticos da história dos EUA. A família não estava envolvida. Correspondências e atas de reunião obtidas desde então, porém, mostram que, dois anos depois, outro Sackler, Mortimer Jr., sugeria a venda de um genérico do OxyContin “para capturar pacientes sensíveis a custos” e Kathe, sua meia-­irmã, queria pesquisar pessoas que mudaram de outro comprimido para o de sua empresa a fim de descobrir por que o fizeram e, assim, ganhar mais consumidores. Há dois anos, mais um Sackler, Jonathan, encomendou, em reunião do conselho, estudos para o desenvolvimento de um novo opioide para o lugar do OxyContin.

Diante da profusão de e-mails e documentos coletados pela Justiça que comprovam o envolvimento da família na promoção da pílula, os Sackler são citados agora — oito deles nominalmente — em processos movidos por 35 estados e em uma mega-ação que reúne 1 600 casos apresentados por 500 municípios. Um estado, Oklahoma, com julgamento previsto para maio, aceitou em março fazer um acordo em que empresa e família pagarão 270 milhões de dólares para encerrar o assunto. Diante do precedente, a Purdue Pharma já acena com pedido de concordata.

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MUNDO DAS ARTES – Elizabeth, filha do patriarca Arthur (Desiree Navarro/WireImage/.)

Para piorar a situação dos Sackler, novos documentos confirmam sua intenção de seguir em frente com um certo Projeto Tango, que previa investimentos em medicamentos para recuperar dependentes de opioides — muito meritório, não fosse a hipocrisia de faturar nas duas pontas, no estímulo e no combate ao vício. “Os tratamentos de dor e dependência estão naturalmente vinculados”, diz um relatório, no qual o desenho de um funil define a boca maior como “tratamento de dor” e a menor como “tratamento de vício em opiáceos”. Mais: um processo recém-­aberto em Nova York investiga o desvio de milhões do laboratório para contas da família em paraísos fiscais.

Diante das evidências, os Sackler estão se tornando párias no mundo das artes e na academia, onde passaram a vida sendo bajulados. Nas últimas semanas, as galerias Tate, de Londres, anunciaram que não vão mais receber doações da família. “Os Sackler doaram generosamente no passado a um grande número de instituições artísticas britânicas. Não pretendemos remover referências a essa filantropia, mas, nas circunstâncias atuais, não achamos certo procurar ou aceitar novas doações”, disse um porta-voz a VEJA. O Guggenheim de Nova York, que teve algum Sackler em seu conselho por várias décadas, também decidiu afas­tar-­se. Em fevereiro, o museu foi alvo de um protesto liderado pela fotógrafa Nan Gondin, ela própria uma ex-­viciada em OxyContin, em que manifestantes atiraram folhas de papel do alto do famoso vão do museu. Sackler, agora, é sinônimo de dependência de uma droga que, com o beneplácito de autoridades, farmácias e médicos, produziu na sociedade americana uma terrível epidemia de viciados.

Com reportagem de Giulia Vidale

Publicado em VEJA de 17 de abril de 2019, edição nº 2630

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