Somos Bolívia
A destituição de Morales reaviva os clichês que tornam a América Latina tão típica
A crise na Bolívia representa um lamentável retrocesso, não só para esse país, mas para o conjunto da América Latina. Outros países do continente já vinham emitindo sinais de instabilidade e outros ainda, o Brasil na frente, de (digamos, com benevolência) um certo descuido no respeito às instituições democráticas. A Bolívia deu um passo além, ao propiciar, como nos velhos tempos, o espetáculo de um presidente que vira pó a um piparote do comandante do Exército. Criou, para os vizinhos do continente, um precedente perigoso, se é justo falar em “precedente” quando o que se vislumbra é a volta ao passado.
A destituição de Evo Morales reaviva os clichês que tornam a América Latina tão típica. Um deles é discutir, depois do golpe, se o golpe foi golpe. Dar nomes honrosos aos golpes é especialidade do continente. No Brasil o passeio militar que instituiu o regime republicano, 130 anos atrás, foi chamado de “proclamação da República”, e o movimento de tropas que sufocou o governo em 1964, de “revolução”. No caso boliviano a negação do título infamante de “golpe” até conta com bons argumentos. Golpe de verdade seria o do próprio Morales, ao fraudar as eleições. Golpe seria também seu desrespeito, em 2016, à consulta popular que rejeitara a possibilidade de ele disputar um quarto mandato. (A justificativa com que ganhou a causa na Justiça — de que, barrando sua candidatura, se desrespeitava o direito, assegurado a todos os cidadãos, de votar e ser votado — merece o status de clássico latino-americano de todos os tempos.) E golpe seria ainda ter o presidente manipulado o Poder Judiciário o suficiente para contar com juízes subservientes a seus anseios.
Temos então três golpes de Morales contra um dos generais. O placar confere larga vantagem ao golpismo do presidente, mas não retira do dos generais a qualidade de golpe, ainda mais que se constituiu no vencedor da parada. A ação dos militares, em transmissão pela TV, propiciou até, para os anais da história, a clássica imagem do golpe — meia dúzia de fardados de cara enfezada, alguns com uniforme camuflado de luta na selva, bandeiras ao fundo. O fato de terem optado, na manifestação, por “sugerir” a renúncia lhes confere o bônus de um toque de delicadeza, mas nem assim escapam do golpismo. Um ladrão pode “sugerir” que a vítima lhe entregue a carteira, mas tal delicadeza não elide a circunstância de que exibe uma faca na mão.
No máximo de boa vontade, a ação dos generais da Bolívia pode ser chamada de contragolpe. Com isso, para confirmar as insistentes recorrências na história da América Latina, equipara-se ao Brasil de novembro de 1954, ocasião em que recebeu o título de “contragolpe”, enriquecido pelo adjetivo “preventivo”, a ação do comandante do Exército, Henrique Lott, contra as articulações para impedir a posse do presidente eleito Juscelino Kubitschek. Para coroar sua criatividade semântica, o “contragolpe preventivo” de Lott atribuiu-se o objetivo de “retorno aos quadros constitucionais vigentes”. O Brasil de então foi bem-sucedido nesse afã, mas não a Bolívia de hoje, que, depois da destituição de Morales, e da renúncia de todos os mandatários na linha de sucessão, se viu à deriva, pela ausência de um Parlamento e de um Judiciário à altura de se fazerem de mediadores da crise. Vai aqui uma advertência ao Brasil, nestes tempos de arreganhos contra o Congresso e vitupérios contra o Supremo Tribunal Federal.
A instabilidade das instituições, seu desrespeito por setores da sociedade e sua manipulação pelos detentores do poder — esse é o ponto central, que faz da América Latina uma região subdesenvolvida e folclórica. “A importância das Constituições não impedia que vivessem sendo reelaboradas”, escreve o latino-americanista John Charles Chasteen, no livro América Latina — Uma História de Sangue e Fogo, sobre as primeiras décadas de existência independente dos países da região. E acrescenta: “Todo mundo sabia, por experiência, que cada nova Constituição logo podia ser cancelada, e que cada novo presidente logo poderia ser substituído por uma revolução”. Foi assim até outro dia, e o caso da Bolívia demonstra que pode voltar a ser.
P.S.: o presidente Bolsonaro quer dar o nome de Aliança pelo Brasil ao partido que pretende criar. A aberrante reivindicação, por uma facção, do monopólio do bem destinado ao país é mais uma evidência de impulsos antidemocráticos.
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Publicado em VEJA de 20 de novembro de 2019, edição nº 2661