“Morte aos mentirosos” é provavelmente um dos melhores slogans políticos dos últimos tempos. Traduz, em sua violência, a revolta dos iranianos com o cinismo das mais altas autoridades que, durante três dias, negaram que o desastre do avião ucraniano em Teerã, cheio de estudantes locais, tivesse sido causado por um míssil antiaéreo. Quem nunca sentiu vontade de clamar aos céus alguma coisa muito parecida — um castigo bravo, digamos, em lugar da morte — em relação aos engodos dos que são pagos para nos representar, não para mentir na nossa cara? Por aqui, estamos longamente escolados nas trapaças dos puros, inocentes, intocáveis e moralmente impecáveis que não só nos governam, como pontificam sobre a própria superioridade moral. Mas temos, com todas as conhecidas fragilidades, não apenas um Judiciário independente, como juízes e promotores que não se intimidam. Temos também, com as mesmas ressalvas, uma imprensa furiosamente arredia a ameaças e bem-bolados — a insubstituível expressão brasileira que durante tantos anos sustentou a corrupção deslavada.
Com sua coragem, os manifestantes deram uma inesquecível lição de moral. Em política não existe o nunca mais. Nem sequer no Irã
Nada disso existe no Irã. Com um sistema político misto, com representantes eleitos (depois de muito bem filtrados) e um superpoderoso organograma teocrático paralelo, não há nada parecido com pesos e contrapesos. Bem ao contrário. O regime iraniano mentiu sobre a derrubada do avião de passageiros, com 176 inocentes estilhaçados por um míssil, porque achou que ninguém iria cobrar explicações. Esqueceu que vivemos num mundo coalhado de câmeras de segurança, vigiado constantemente por satélites e espontaneamente espionado pelas redes sociais. Com um celular na mão e um punhado de imagens flagradas ao acaso, sujeitos comuns se transformam em cidadãos capazes de tirar as próprias conclusões. É um perigo isso. Mesmo quando esses cidadãos são uma minoria — valente, mas minoria — num oceano de milhões de surtados vestidos de preto, batendo no peito para jurar vingança pela morte de Qasem Soleimani.
Donald Trump também flexibilizou as fronteiras da verdade ao dizer que Soleimani e companhia tramavam ataques contra quatro embaixadas americanas? Muito provavelmente. Existe equivalência moral entre os engodos de Trump e os dos poderosos iranianos? De jeito nenhum. Primeiro, porque Trump é tão vigiado pela oposição e pela imprensa que pode acontecer até o efeito contrário: tudo o que ele faz é, em princípio, errado. Mesmo quando está certo. Segundo, porque com todos os seus erros, muitos devastadores, como a invasão do Iraque para derrubar Saddam Hussein, em 2003, os Estados Unidos não planejam deliberadamente explodir civis inocentes como fez Soleimani, cujas astúcia e habilidade em defender a causa do regime iraniano não devem ser confundidas com justiça de propósitos.
Com sua revolta e sua coragem de desafiar um regime brutal, os manifestantes iranianos que pediram “morte aos mentirosos” deram uma inesquecível lição de moral aos que, para trolar Trump, exaltavam Soleimani e garantiam que a oposição espontânea das ruas nunca mais iria se manifestar. Não existe o nunca mais em política. Nem sequer no Irã.
Publicado em VEJA de 22 de janeiro de 2020, edição nº 2670