Assine VEJA por R$2,00/semana
Continua após publicidade

Operação abafa

Sumiço de jornalista dentro do consulado saudita em Istambul começou como grave questão de direitos humanos — e está virando uma disputa de poder e petróleo

Por Thais Navarro
Atualizado em 30 jul 2020, 20h06 - Publicado em 19 out 2018, 07h00

Há duas semanas, o jornalista saudita Jamal Khashoggi, de 60 anos, entrou no consulado da Arábia Saudita em Istambul, na Turquia, para obter documentos necessários para o seu casamento. E nunca mais foi visto. Na semana passada, na cascata de provas e contraprovas que surgem a todo momento com pistas e contrapistas sobre o sumiço de Khashoggi, um oficial turco descreveu o conteúdo de um áudio segundo o qual o jornalista foi assassinado depois de ter os dedos cortados: acabou decapitado e desmembrado, e os pedaços do seu corpo foram colocados em malas, secretamente levadas do consulado por agentes sauditas. Esse grupo, em torno de quinze membros dos serviços de inteligência, desembarcou em Istambul e retornou à Arábia Saudita no mesmo dia do sumiço de Khashoggi. Entre eles, nove voaram em um jato do governo e um era um médico-legista.

Os detalhes do assassinato teriam sido captados, de acordo com o jornal turco chapa-branca Sabah, pelo relógio Apple Watch que o jornalista levava no pulso. O dispositivo consegue conectar-se e trocar arquivos com celulares iPhone. Kashoggi, antes de entrar no consulado, deixou seu telefone com a noiva, que o esperou do lado de fora. Além dos áudios, o relógio poderia ter enviado dados como o batimento cardíaco e a localização da vítima. A existência desses áudios, no entanto, ainda não foi confirmada. Para que o relógio pudesse ter enviado arquivos, seria necessária uma conexão de dados. Dentro do consulado saudita, seria improvável que os funcionários tivessem fornecido a senha da internet sem fio para o jornalista. As duas únicas opções seriam por roaming de dados, cedido pela operadora, ou por Bluetooth. A primeira funcionalidade, segundo a Apple, nem sequer está disponível entre os serviços das operadoras de comunicação na Turquia. O Bluetooth, por sua vez, só pode ser usado para distâncias curtas — e o espaço do consulado é muito amplo.

Depois de muito insistir, o governo da Turquia obteve autorização para analisar o prédio do consulado. Com o atraso, os investigadores só conseguiram entrar no local na segunda-feira 15, treze dias após o desaparecimento de Khashoggi. Para surpresa dos jornalistas que estavam plantados na calçada, duas horas antes da inspeção, uma equipe de limpeza adentrou o prédio. “Espero que possamos chegar a uma opinião razoável o mais rápido possível, porque a investigação está examinando muitas coisas, como substâncias tóxicas e materiais que foram removidos com tinta”, disse depois o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan.

Logo que soube do ocorrido, o presidente americano Donald Trump reagiu de maneira espontânea ainda no dia 9 de outubro: “Estou preocupado. Não gostei de ouvir essa história. Espero que isso se resolva”. Com medo de sofrer sanções, o príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman, conhecido pela sigla MBS, reagiu com fúria. Um jornal saudita afirmou no dia 14 que o preço do petróleo poderia subir para 200 dólares o barril. A ameaça funcionou. No dia seguinte, Trump disse ter conversado com o saudita por telefone e sugeriu, mudando de tom por inteiro, que o jornalista poderia ter sido morto “por assassinos fora de controle”. Ou, em tradução mais coloquial, “por aloprados”. Com isso, Trump tentou desvincular os autores do crime de um de seus maiores aliados no Oriente Médio. Como tudo se passou no interior do consulado, a tese de Trump soou inverossímil. Depois que a Turquia divulgou as imagens dos passaportes dos sauditas que estavam no consulado, o jornal The New York Times publicou que quatro deles eram próximos de MBS. Um inclusive podia ser visto em diversas fotos com o príncipe herdeiro. Na terça-feira 16, o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, aterrissou em Riad, capital saudita, para uma reunião com MBS. Depois do encontro, Pompeo disse que o príncipe declarou não saber o que se passou no consulado.

Continua após a publicidade

Como o tema dos direitos humanos só costuma entrar na pauta de Trump quando isso lhe convém, as chances de que o americano volte a soltar a língua sobre o que aconteceu em Istambul são pequenas. Desde sua campanha para presidente, Trump ressaltava a importância dos aliados árabes sunitas contra a crescente ambição do Irã, uma teocracia xiita. Em maio, Trump retirou seu país do acordo nuclear entre as seis potências e o Irã. “Israel, Estados Unidos e a Arábia Saudita buscam conter a influência do Irã na região”, diz o especialista em política externa iraniano Sina Azodi, da Universidade do Sul da Flórida. “Trump também espera que a Arábia Saudita eleve sua produção de petróleo para substituir a participação do Irã no mercado e, assim, evitar um choque de preços”, diz Azodi. De­pois que o sumiço de Khashoggi ganhou visibilidade, diversas empresas ocidentais cancelaram a participação em um evento para investidores que vai acontecer no fim deste mês, conhecido como “Davos no Deserto”. O impacto, contudo, deve ser limitado. Diz o cientista político Mark Katz, da Universidade George Mason, na Virgínia: “Esses empresários não querem ser vistos lá, mas eles podem mandar representantes de escalão inferior. É uma atitude simbólica”. Sombrios são os tempos em que um governo pode executar um cidadão e fica tudo por isso mesmo.

Publicado em VEJA de 24 de outubro de 2018, edição nº 2605

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 39,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.