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O impacto do julgamento de um guarda de campo de concentração em Berlim

Caso mostra como é difícil a caçada aos carrascos nazistas e retrata o encerramento de uma era

Por Caio Saad
16 out 2021, 08h00

Apoiado em um andador, com o rosto coberto por uma pasta, o alemão Josef Schuetz, 100 anos, caminhou calmamente até sua cadeira no tribunal de Brandemburgo sob o olhar atento de uma plateia composta de sobreviventes e familiares de vítimas do Holocausto. Passados 76 anos do fim da II Guerra Mundial, Schuetz, guarda do campo de concentração de Sach­sen­hau­sen, perto de Berlim, começou neste mês a ser julgado por cumplicidade no assassinato de 3 518 prisioneiros entre 1942 e 1945 no local onde ocorreram os primeiros experimentos de extermínio em massa e que também servia de centro de treinamento da SS, a aterradora força paramilitar do regime nazista.

As 21 sessões, às quais o acusado — que passou décadas trabalhando como chaveiro na Alemanha, sem despertar atenção — comparece por no máximo três horas, devem se encerrar em fevereiro e ouvir o depoimento de sete sobreviventes de Sach­sen­hau­sen. A idade avançada de todos os personagens faz deste um processo particularmente sensível: está se fechando a janela de tempo para levar agentes do nazismo aos tribunais e muitos escaparam impunes. “Este é o último julgamento para meus amigos, conhecidos e entes queridos que morreram assassinados. Espero que nele o último culpado seja condenado”, declarou Leon Schwarz­baum, 98 anos, sobrevivente do Holocausto, ao depor no primeiro dia.

Existem atualmente dezessete processos de agentes do regime nazista em andamento na Alemanha, todos com réus de 95 anos ou mais. A demora na prestação de contas desses crimes na Justiça do país se deve ao fato de que, até dez anos atrás, um acusado, sobretudo se tivesse servido no baixo escalão da hierarquia, só era levado aos tribunais se houvesse provas de seu envolvimento direto em assassinatos. O princípio só seria revisto em 2011, no julgamento do ucraniano John Demjanjuk, outro ex-guarda que obteve cidadania americana e demorou décadas para ser deportado. Nele, a acusação fez valer o princípio de que qualquer indivíduo em posição de força em um campo de extermínio é um exterminador, qualquer que seja sua função. “Ter servido em um local onde está claro e evidente que ocorriam assassinatos sistemáticos constitui, em si, uma cumplicidade passível de punição, desde que sejam apresentadas provas suficientes”, explica Thomas Will, chefe do Escritório Central de Investigação de Crimes do Nazismo, agência do Departamento de Justiça alemão que, desde então, tem encaminhado em média trinta nomes por ano para investigação e possível processo judicial.

ATROCIDADES - Eichmann: imagem da “banalidade do mal” definida por Arendt -
ATROCIDADES - Eichmann: imagem da “banalidade do mal” definida por Arendt – (GPO/Getty Images)

Todos os países da Europa ocupados pelas tropas de Hitler promoveram julgamentos em massa de criminosos nazistas — só a Polônia processou 40 000 e condenou 5 000 por atrocidades cometidas em seu território. Na Alemanha, no entanto — país elogiado pela franqueza com que encarou o passado nazista —, a Justiça lenta e cheia de brechas permitiu que muitos escapassem sem punição. O acerto de contas com a barbárie nazista, entretanto, começou justamente lá, na cidade de Nuremberg, onde uma corte internacional especialmente criada pela primeira vez colocou no banco dos réus boa parte da alta cúpula — militar, jurídica, política — de um regime.

O Tribunal de Nuremberg, entre 1945 e 1946, julgou 24 acusados de crimes de guerra, dos quais doze foram executados, sete receberam penas de dez anos a prisão perpétua, três foram absolvidos e dois tiveram as acusações retiradas. Desse processo revolucionário nasceram os conceitos de “crime contra a humanidade” e “genocídio”, utilizados desde então contra déspotas e regimes sanguinários até então impunes. O Holocausto — com seus 6 milhões de judeus as­sas­sina­dos por nazistas — é um crime que “supera e esfacela todos os sistemas legais”, escreveu Hannah Arendt, a pensadora germano-americana que cunhou a definição “banalidade do mal” ao acompanhar outro julgamento célebre: o de Adolf Eichmann, tenente-coronel de Hitler capturado pelo serviço secreto israelense na Argentina e processado em Jerusalém em 1961. Ele tentava justificar seus atos alegando ser um homem comum que cumpria ordens (foi condenado e enforcado no ano seguinte). “Mais do que punir, a principal função dos julgamentos de nazistas é abrir os olhos do público para seus crimes, algo especialmente importante neste momento em que o antissemitismo se intensifica e os sobreviventes estão acabando”, diz Rainer Schulze, professor de história europeia moderna da Universidade de Essex. Centenários, acusado e acusadores do julgamento em Brandemburgo estão entre os últimos a servir a esse propósito.

Publicado em VEJA de 20 de outubro de 2021, edição nº 2760

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