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O fim da polícia? O que americanos querem dizer com ‘defunding’

Trump deu o primeiro passo, mas movimento organizado quer mais; Alguns defendem acabar com a polícia, outros uma reforma ampla; Todos exigem mudanças

Por Amanda Péchy Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 16 jun 2020, 20h09

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, assinou nesta terça-feira, 16, um decreto que prevê a reforma na polícia do país. O ato ocorre em decorrência das semanas de protestos contra a violência policial, depois da morte de George Floyd. A medida prevê o aumento do investimento em equipamentos, compartilhamento do histórico de agentes entre departamentos e uso de armas não letais. A imobilização com o joelho – a causa da morte de Floyd – será banida, a não ser em casos em que o agente esteja em risco de morte.

Foi também uma reposta de Trump aos manifestantes e políticos  que querem mudar a polícia nos Estados Unidos. As propostas não são únicas. Vão de reforma à dissolução dos departamentos de polícia. Apesar do projeto federal estar longe de atender tais demandas, o avanço é palpável: na semana passada, Trump havia tuitado que “Tirar o financiamento da polícia seria bom para ladrões e estupradores”.

“Defund the police” (“Tire o financiamento da polícia”) tornou-se grito de guerra nas ruas, substituindo o grito mais tradicional impulsionado por aquela palavra que começa com “F”. Para os defensores da ideia, descapitalizar a polícia e investir o dinheiro em outras áreas, principalmente sociais, traria mudanças profundas na instituição e tiraria dela a imagem de “gestora pública”, voltada à proteção das comunidades – já que muitos americanos, negros e latinos em especial, não se sentem protegidos, mas sim perseguidos pela força policial. A principal reivindicação é acabar com a cultura de punição no sistema de justiça criminal.

A proposta ainda é nebulosa e pode demorar a vingar. Em pesquisa realizada pelo jornal americano The New York Times, apenas 16% da população disse ser a favor do “desinvestimento” policial. O democrata de maior destaque atualmente, o ex-vice-presidente e candidato à presidência Joe Biden, disse que é contra a retirada de financiamento da polícia.

Mesmo assim, os gritos estão gerando repercussões.

Na semana passada, o Conselho da Cidade (espécie de câmara de vereadores) de Minneapolis,  onde Floyd morreu quando foi detido pelo ex-policial Derek Chauvin, prometeu desmantelar o Departamento de Polícia, criando um novo sistema de segurança pública no lugar. Do orçamento anual de 1,3 bilhão de dólares da cidade, 189 milhões foram para a polícia neste ano.

Lisa Bender, presidente do conselho, espera transferir dinheiro para outras áreas carentes  do município. Contudo, os próprios membros do conselho dizem não ter certeza do modelo a seguir, e alertam que os planos levarão muito tempo para serem realizados.

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Como nunca houve uma retirada substancial, em larga escala, dos recursos da segurança pública, é difícil dizer o que aconteceria. Até mesmo entre os defensores da ideia, não há consenso. Alguns desejam realocar apenas parte do fundos dos departamentos de polícia para serviços sociais. Outros, querem dissolver os departamentos. Mas todos propõem repensar a segurança pública, com práticas diferentes das atuais para proteger a população.

O que viria no lugar?

“Defund the police” talvez não seja a melhor bandeira, porque o foco está naquilo que está sendo retirado. A proposta é, na verdade, transformar a ação policial. Mandados de segurança e batidas no estilo militar, estão na mira dos movimentos, bem como a restrição de  equipamentos militares nos departamentos policiais e a mudança na abordagem das manifestações. O ponto principal, contudo, é que o orçamento extra seja investido em um leque mais diversificado de serviços de segurança.

“Atualmente, a polícia é a responsável padrão por todas as emergências. A ideia é investir em outras áreas, como serviços sociais de saúde mental, violência doméstica e falta de moradia”, diz Miriam Gohara, professora de direito da Universidade de Yale. Se uma pessoa em situação de rua dormir em frente a um comércio, o dono poderá ligar para uma assistência social, ao invés do “911”. No caso de um incidente ligado ao abuso de drogas, um centro comunitário de saúde mental poderia ser acionado.

“Deve haver oportunidades para a polícia interagir com a comunidade. Mas diminuindo esse contato constante, o vetor de violência é reduzido”, explica Gohara. Além disso, a professora diz que o excesso de policiamento pode sair pela culatra: sabendo da possibilidade de violência, pessoas podem sentir-se desencorajadas de reportar crimes.

Os Estados Unidos investem cerca de 100 bilhões de dólares anualmente com a polícia e os movimentos de “Defunding” querem um pedaço desse dinheiro. Os grupos sugeriram investimentos a longo prazo em áreas que não estão diretamente ligadas à segurança pública, mas que, segundo eles, poderiam reduzir a violência e a criminalidade em comunidades carentes, como saúde educação e assistência social. Até os  defensores de energias renováveis reivindicaram uma parte do orçamento para reduzir as emissões de gás carbônico. A professora Gohara, no entanto, defende que “o dinheiro não deve ir para muito longe”. “É importante investir na área da segurança pública, em primeiro lugar”, diz ela.

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Sem polícia, aumenta a criminalidade?

De acordo o com o New York Times,  entre 1977 e 2017, houve um decrescimento da violência nos Estados Unidos. Um relatório do Urban Institute constatou que, no mesmo período, os governos estaduais promoveram um aumento no investimento das polícias – foi de  60 bilhões de dólares, em 1977, para 194 bilhões de dólares, em 2017. A lógica de investir mais no policiamento para reduzir o crime, que prevaleceu até o momento, porém, pode não ser tão eficaz quanto parece.

Um relatório sobre o Departamento de Polícia de Nova York, que propositadamente recuou no “policiamento proativo” – maior presença policial em áreas onde o crime é recorrente – entre 2014 e 2015, descobriu que houve 2.100 menos queixas de crimes durante esse período.

Comparações internacionais também corroboram a tese. Mesmo com investimentos pesados em segurança, a taxa de homicídios nos Estados Unidos ainda é superior à média entre os países membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), e cerca de quatro vezes a taxa do vizinho Canadá. Os Estados Unidos gastam o dobro do que toda a Europa com polícia, mas apenas 18,7% do PIB vai para programas sociais – na França são 31,2% e na Alemanha, 25,1%. Nos dois países, a criminalidade é mais baixa.

Mudanças já chegaram

Algumas cidades já fizeram alterações no policiamento. Em Austin, no estado do Texas, ligações ao “911” são atendidas por operadores que acionam a polícia, os bombeiros ou serviços de saúde mental, dependendo da emergência. Em Eugene, no Oregon, a equipe de Assistência a Crises nas Ruas (CAHOOTS) envia um médico e um funcionário com treinamento em saúde mental para chamadas de emergência. A cidade de Camden, em Nova Jersey, reformou o departamento de polícia em 2017. Substituiu multas por avisos e diversificou o treinamento dos policiais.

James Forman, autor de “Locking up Our Own: Crime and Punishment in Black America”, (Prendendo seus Pares: Crime e Punição na América Negra). cita a Operação Ceasefire, implementada em 1996 em Boston, como exemplo a ser seguido. O programa focava a epidemia de homicídios com armas de fogo por jovens em bairros pobres da cidade, e contou com a colaboração de ex-membros de gangues para mediar conflitos e impedir a retaliação. Um estudo feito cinco anos depois revelou queda de 63% nos homicídios.

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O risco de sub-policiamento localizado

Atualmente, bairros negros enfrentam o problema de excesso de policiamento racista. Na década de 1960, era a falta de policiamento: a polícia negligenciava esses bairros negros. Especialistas temem que a redução da polícia gere uma situação parecida.

Ao invés de segurança pública, cidades e estados poderiam contratar sua própria força policial privada, como em condomínios fechados. Não seria surpreendente se houvesse um êxodo de pessoas ricas para lugares considerados “mais seguros”, enquanto aqueles que vivem em áreas mais pobres, com alta taxa de criminalidade, deixariam de ter proteção policial.

“Pessoas com recursos financeiros não querem se arriscar sem uma força policial, criando um risco real de sub-policiamento racista”, diz James Forman à VEJA. Podemos esperar um boom no setor de serviços de segurança armada.

Ele também alerta para o risco de depender da segurança privada: “Já há falta de ‘accountability’ [responsabilização] no setor público. O setor privado pode ser ainda menos transparente”.

Brasil

No início do mês, Miguel Otávio, de 5 anos, caiu da janela de um prédio onde sua mãe era doméstica. Os dois são negros, e a patroa foi acusada de negligência e homicídio culposo. A questão do racismo não demorou a ser levantada.

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Ao longo das semanas, os protestos contra a violência policial ecoaram no Brasil com notas de familiaridade, e o contexto reacendeu a discussão sobre a desmilitarização da polícia.

“O sistema de justiça criminal foi uma das áreas menos mexidas durante a redemocratização nos anos 1980”, diz João Trajano, pesquisador do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania do Rio de Janeiro.

Segundo Trajano, de forma similar aos Estados Unidos, para lidar com a violência policial no Brasil seria necessário não uma reforma, mas uma reinvenção.

Para o professor, os três principais pilares de mudanças seriam as doutrinárias, as estruturais e as operacionais: em primeiro lugar,  formar funcionários de segurança pública em vez de guerreiros; depois, criar mecanismos de accountability, da base até o comando; por fim, mudar a cara das forças que, fortemente armadas, são vetores de violência  e não redutoras de conflito.

Enquanto nos Estados Unidos o debate pega fogo, a ação policial nas periferias e favelas não mobiliza toda a sociedade brasileira. “Temos George Floyds todos os dias no Rio de Janeiro. Ainda estamos esperando a panela de pressão explodir”, diz Trajano.

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