Um jornalista de um dos mais importantes jornais ocidentais, uma documentarista que trabalha em um filme sobre espionagem e um sujeito misterioso que só se comunica por meio de mensagens criptografas encontram-se em um luxuoso hotel em Hong Kong. Parece o argumento inicial de um filme de ação, mas é o início do livro do advogado e jornalista americano Glenn Greenwald, “Edward Snowden, a NSA e a espionagem do governo americano”. Lançado quase concomitantemente nos Estados Unidos e no Brasil, Sem Lugar para Se Esconder (Editora Primeira Pessoa, 288 páginas, 39,90 reais em papel ou 24,90 em e-book), é uma mescla de livro-reportagem, narrativa policial e manifesto. Mesmo que os capítulos sejam bem estruturados e com temas centrais definidos, a mistura de gêneros permeia toda a obra e faz com que ela perca força, mantendo um foco difuso e comprometendo tanto o objeto do livro como o interesse do leitor.
Colunista do jornal britânico The Guardian e advogado experiente, Greenwald entrou no jornalismo escrevendo sobre violações de direitos civis por parte dos governos. Sua atuação chamou a atenção de Edward Snowden, um analista de segurança digital que trabalhava como terceirizado para a Agência de Segurança Nacional americana (NSA, na sigla em inglês). Durante meses Snowden tentou entrar em contato com Greenwald, que o ignorou. Nos e-mails que o analista enviou ao jornalista havia sempre recomendações para instalar programas de criptografia de dados para que ambos pudessem conversar em segurança, via computador. A complexidade das instruções técnicas foi um dos motivos que levou Greenwald a se afastar de Snowden. O analista então mudou sua abordagem e foi atrás de Laura Poitras, uma documentarista americana que tem no currículo, entre outras obras, o filme My Country, My Country (2006), sobre a ocupação americana no Iraque, que concorreu ao Oscar em 2007. Poitras estava fazendo um documentário sobre espionagem e sua atuação nos bastidores para levantar dados para seus filmes foi notada pelo governo americano.
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Capa do livro ‘Sem Lugar para Se Esconder’
Laura conhecia Greenwald e ambos se encontraram casualmente em Nova York. O jornalista, que mora no Rio de Janeiro, estava na cidade para uma série de palestras. Era abril de 2013 e o encontro daria início ao vazamento de documentos confidenciais considerado o mais importante da história. O começo do livro tem ritmo de thriller policial e descreve os pormenores das conversas entre Snowden, Greenwald e Laura, que culminariam em um encontro sigiloso em Hong Kong. Enviado à cidade pelo Guardian, Greenwald tinha a missão de entrevistar Snowden e comprovar a veracidade de seus documentos e suas intenções. Por trás da imagem de um nerd frágil, magro, com uma tez de quem não toma sol há meses, óculos e um cavanhaque ralo, escondia-se um especialista experiente em cibersegurança e um hacker talentoso. Longe de ser apenas um ‘analista’, Snowden trabalhou na CIA (agência de inteligência americana) entre 2005 e 2010, tendo assessorado diretamente o então presidente George W. Bush em uma importante reunião da Otan, na Europa. Atuando disfarçadamente com credenciais diplomáticas, Snowden morou em Genebra entre 2007 e 2010. Depois saiu da agência e foi trabalhar na NSA como prestador de serviços. A NSA é a maior agência de inteligência do planeta e conta com cerca de 90.000 funcionários, sendo quase 60.000 terceirizados.
A primeira reportagem de Greenwald com o material surrupiado por Snowden foi publicada em 6 de junho de 2013 e informava como a NSA coleta diariamente dados telefônicos de milhões de americanos contando com a ajuda da Verizon, uma das maiores operadoras de telefonia do país. A revelação causou um abalo sísmico na política dos EUA e, pouco depois, na medida em que o trabalho de Greenwald prosseguia, o terremoto seria internacional. Todos os governos espionam e sabem que são espionados, mas ninguém poderia imaginar o potencial técnico dos americanos, que são capazes de coletar praticamente todas as formas de comunicação on-line e telefônicas do mundo. A repercussão foi global, a chanceler alemã Angela Merkel ligou furiosa para o presidente americano Barack Obama para reclamar que teve seu telefone pessoal grampeado e seu computador invadido. No Brasil, a presidente Dilma Rousseff também manifestou indignação pela invasão de computadores da Petrobras, do Ministério de Minas e Energia e em outros setores do governo. Dentro dos EUA, entidades civis e congressistas dos dois maiores partidos passaram a pressionar a Casa Branca para modificar as atribuições da NSA.
Saiba mais: Eu espiono, tu espionas, nós espionamos…
Como narrativa policial, o livro vai bem, mas como reportagem ele escorrega em comentários pessoais e adjetivos. Com isso, os fatos substantivos e os leitores saem perdendo. Em mais de uma oportunidade Greenwald exalta a si próprio e o caráter de Snowden. “Sua decisão [de Snowden] fora movida por um espírito de destemor, paixão e força. Para fazer justiça ao seu sacrifício, eu estava decidido a imbuir meu trabalho jornalístico do mesmo espírito”, escreve o autor em uma passagem. Frases como essa não acrescentam nada ao livro, pelo contrário, deixam-no enfadonho, com um tom autoindulgente. A parte reservada às revelações dos documentos aos quais Greenwald teve acesso também é decepcionante. Salvo uma ou outra história inédita – apenas uma de grande impacto – praticamente tudo que ele nos mostra já havia sido divulgado em reportagens, com menos riqueza de detalhes. Os capítulos finais do livro são dedicados a uma exaustiva e desnecessária autodefesa, escrita num tom de discurso em prol da liberdade de imprensa – algo muito importante, sem dúvida, mas que contamina a pretensão de livro-reportagem e o andamento rítmico da obra.
Na esteira dos atentados de 11 de setembro de 2001, os EUA aprovaram uma série de leis para proteger o país de futuras ações terroristas. A justificativa era que, para preservar a vida de todos, era indispensável invadir a privacidade de alguns. Quando candidato, Obama se manifestou contra a iniciativa e prometeu acabar com o que chamou de “grampos ilegais dos cidadãos americanos”. Depois que Obama assumiu a Casa Branca, a gigantesca máquina de espionagem americana só fez crescer. Com bons argumentos – alguns deles legais, garantidos pela Constituição dos EUA – Greenwald questiona os limites da espionagem dentro e fora do território americano.
A espionagem de tudo e todos é um fardo não só para os cofres públicos como para o próprio trabalho da área de inteligência, que tem de se desdobrar para processar uma quantidade de informações sem precedentes. Mesmo após a vigilância massiva ser adotada como prática de rotina, só para citar três casos, os EUA não foram capazes de impedir o ataque ao Hotel Marriot, acontecido em 2008, em Islamabad; as explosões na embaixada americana em Benghazi, em 2012 na Líbia; ou o atentado na maratona de Boston, em 2013 – todos atos de terrorismo que tiraram vidas de americanos.
O Guardian e o Washington Post foram premiados em abril com o Pulitzer, na categoria Serviço Público, por revelarem ao público a extensão da bisbilhotice oficial do governo americano. A contribuição do trabalho jornalístico de Greenwald no diário britânico é inegável e entrará para a história. Já o seu livro, não.