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Eu espiono, tu espionas, nós espionamos…

A inteligência é trabalho rotineiro em qualquer democracia. Mas enquanto umas reagem aos casos de espionagem da NSA de maneira inócua, outras partem para ações concretas e afinam os ponteiros para se adaptarem à nova realidade

Por Diego Braga Norte 17 nov 2013, 14h30

As revelações recentes sobre a forma como a Agência Nacional de Segurança americana (NSA, na sigla em inglês) espionou governos, empresas e cidadãos causaram reações distintas. Países como Brasil e México espernearam, fizeram biquinho, e reagiram com inócuas retaliações diplomáticas. A presidente Dilma Rousseff se recusou a ir a Washington enquanto não recebesse um pedido de desculpas da administração Obama, e o governo do México emitiu uma dura nota oficial contra seu principal parceiro comercial, destino de cerca de 80% das exportações mexicanas. A chanceler alemã Angela Merkel, que supostamente teve seu telefone celular grampeado, num primeiro momento, também reclamou. Depois, com uma agenda mais propositiva, Merkel conseguiu marcar reuniões na Casa Branca entre representantes da área de inteligência dos EUA e da Alemanha com o objetivo de chegar a um denominador comum sobre a espionagem, mostrando a direção por onde os trabalhos de inteligência entre aliados devem seguir.

Segundo especialistas consultados pelo site de VEJA, tanto a espionagem quanto a colaboração entre governos aliados vão continuar. Isso é fato. O mundo conectado e digitalizado ajuda o trabalho de acompanhamento e triagem de dados promovidos pelas agências de inteligência. Segundo Francesco Ragazzi, professor de Relações internacionais da Universidade de Leiden, os vazamentos do ex-analista Edward Snowden só confirmam algo que ele e outros estudiosos do assunto já suspeitavam, mas não tinham como provar. “A digitalização em massa de nossas vidas, (e não só os nossos e-mails, mas também os contatos, telefonemas, histórico de navegação na internet, extratos bancários, registros médicos, etc.) levou à possibilidade de vigilância digital em massa. Muitas pessoas suspeitavam que isso estivesse acontecendo, mas ninguém imaginava a proporção que iria tomar”, afirma. Para se ter uma ideia do volume de dados que é possível coletar, Ragazzi conta que somente a Government Communications Headquarters (GCHQ, a agência de inteligência britânica) coleta 21 petabites (21 milhões de gigabites) por dia. Um computador pessoal, desses comuns a muitos lares e escritórios, tem entre 500 e 1.000 gigabites de capacidade de armazenamento e mesmo quando usado com muita frequência, raramente conseguimos dar conta de usar todo o seu espaço de disco rígido.

No caso da forma e extensão da colaboração entre as agências de inteligência, a relação entre elas provavelmente nunca mais será mesma. Francesco Ragazzi afirma que é muito difícil prever o que pode acontecer porque esses acordos de cooperação são ultrassigilosos por envolverem questões delicadas, como riscos à segurança nacional. Apesar disso, é bem razoável supor que parte das operações de inteligência passará por uma revisão significativa. “Há muita coisa acontecendo, nós provavelmente veremos mudanças no interior das agências, ações judiciais e discussão política sobre o grau em que essas práticas são apropriadas e legais. Geralmente, nos regimes democráticos, tais crises levam a uma revisão das modalidades de controle e fiscalização dos serviços de inteligência. Isto é o que distingue as democracias dos estados policiais”, afirma Ragazzi. Para Gunther Rudzit, ex-assessor do ministério da Defesa (2001- 2002), doutor em Ciência Política pela USP e mestre em Segurança Nacional pela Georgetown University, a resposta para as diferentes reações dos governos reside na forma de como a diplomacia de cada país trabalha. Uma vez que o rei está nu, resta saber o que é melhor fazer para aproveitar essa oportunidade “Os alemães estão dispostos a fazer algo em conjunto com os EUA, com uma proposta mais inteligente. Mas nós não. São visões diferentes da diplomacia e da inteligência. Estamos descolados da realidade internacional. Crescemos, mas nos comportamos como pequenos. Não sabemos ainda ser grandes”, disse.

O professor concorda que dois dos aspectos que mais chocaram os especialistas em segurança – e os próprios políticos – foram justamente a expertise técnica da NSA e abrangência dos monitoramentos. “Sabíamos que era possível, mas não sabíamos que o monitoramento de metadados de dezenas de milhões de pessoas realmente estivesse acontecendo. Uma barreira foi ultrapassada”, explica. Os novos tempos exigem ajustes. Dentro dos EUA há uma discussão para impor limites às agências de espionagem. “Há dois valores postos numa gangorra, a segurança e as liberdades individuais, e ambos são muito caros aos cidadãos americanos”, diz Rudzit. “Depois do 11 de setembro, as liberdades ficaram em baixa e a segurança subiu. Agora a gangorra passa por um novo ajuste.”

Espionagem é rotina – Segundo os especialistas ouvidos pelo site de VEJA, a inteligência faz parte do cotidiano de trabalho dos governos – e é importante para eles. O setor de inteligência fornece uma base de informações para a tomada de decisões políticas e econômicas. Quanto mais precisas forem as informações, menor a chance de erro nas decisões. E inteligência não se resume a apenas ações de espionagem (ato de monitoramento efetuado contra os outros países em território estrangeiro) e a contraespionagem (monitoramento feito dentro do próprio território). Coleta e análise de diferentes dados (estudos e previsões econômicas, sociais e demográficas, por exemplo), perfil psicológico de políticos e empresários e até clipping de notícias fazem parte do cotidiano de agentes que trabalham com inteligência. “É um trabalho de rotina de qualquer governo sério. Todos fazem”, diz Rudzit.

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Como exemplo de práticas de inteligência, o professor lembrou-se do contrato assinado em 2009 entre o Brasil e empresas francesas para a transferência de tecnologia para a construção de submarinos nucleares. “Seria muita ingenuidade pensar que não houve trabalho de inteligência, dos dois lados, antes de assinar um contrato desse porte. Em muitas reuniões onde se discutem esse tipo de contrato, é proibido entrar com celulares ou quaisquer outros aparelhos eletrônicos. Todo mundo sabe que há espionagem e que todos que circulam nesse meio estão sujeitos a ela”. Já que todos os países grandes (ou que querem ser grandes) espionam e sabem que são espionados, a maior parte das manifestações de indignação dos governantes está voltada para o público interno. Dá moral falar grosso com americanos, rende capital político. Coincidentemente, a popularidade da presidente Dilma teve uma reação após suas manifestações públicas contra a espionagem da NSA, passando de 31% de aprovação positiva em julho para 58% no último levantamento, divulgado no início de novembro, segundo a pesquisa encomendada pela Confederação Nacional do Transporte (CNT).

Além do fato de que todos os países possuem setores responsáveis pela inteligência, muitas dessas agências e departamentos trabalham em conjunto, compartilhando dados e informações de interesse mútuo. Em uma audiência pública no Congresso americano, no início de novembro, o ex-analista da CIA (agência central de inteligência americana) Paul Pillar e o diretor da NSA James R. Clapper Jr. revelaram que os serviços de inteligência da Alemanha, França, Espanha e Suécia atuaram juntos com a agência de espionagem britânica Government Communications Headquarters (GCHQ) para coletar dados de internet e ligações telefônicas feitas na Europa nos últimos cinco anos. Pillar não mediu palavras e chamou os europeus de hipócritas. “Dada a hipocrisia exibida pelos europeus ao dizerem que estão ‘chocados’ por esse tipo de coisa acontecer – aliados espionarem aliados -, não acho que deveríamos nos sentir muito arrependidos.” Clapper Jr., por sua vez, ressaltou o aspecto corriqueiro do seu trabalho. “A importância da espionagem foi uma das primeiras coisas que eu aprendi na escola de inteligência, em 1963. É um princípio fundamental”, afirmou.

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Francesco Ragazzi relata que existem “diversos acordos” de cooperação entre os EUA e outros países. Alguns desses tratados vigoram há décadas, desde o final da II Guerra Mundial e o começo da Guerra Fria. Como exemplos, cita o grupo chamado ‘Five Eyes‘, criado em 1946, que reúne agências de inteligência dos EUA, Grã-Bretanha, Austrália, Nova Zelândia e Canadá. Há ainda acordos e grupos semelhantes, chamados de ‘Nine Eyes‘ e ‘Fourteen Eyes‘, que reúnem, respectivamente, nove e catorze países trabalhando em conjunto. E é sabido que existe também a chamada ‘Base Alliance‘, criada após os atentados de 11 de setembro de 2001, que agrupa Grã-Bretanha, EUA, Canadá, Austrália, França e Alemanha. “É sabido que as agências aliadas partilham uma vasta quantidade de informação que é recolhida por qualquer uma delas”, diz Ragazzi. “O trabalho conjunto dos setores de inteligência é plenamente justificado se recordamos que Grã-Bretanha e Espanha já sofreram ataques terroristas. Além disso, a França mantém uma relação tensa com setores radicais islâmicos dentro de seu território e fora dele, como a operação militar no Mali, por exemplo. Já a Alemanha foi o ponto de encontro de alguns dos terroristas que anos depois iriam atirar os aviões contra as Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001.”

Ragazzi, junto com o jurista espanhol Sergio Carrera, assina um estudo chamado ‘Mass Surveillance of Personal Data by EU Member States and its Compatibility with EU Law‘ (Vigilância Massiva de Dados Pessoais por Países-Membro da União Europeia e sua Compatibilidade com as Leis da EU), publicado em 7 de novembro pelo Centro de Estudos Políticos Europeus, de Bruxelas, um ‘thinktank‘ ligado à Comissão Europeia. Em seu trabalho, o pesquisador revela que o compartilhamento de informações entre as agências envolve dados coletados por cada país em seu próprio território e em territórios estrangeiros. Por exemplo, a NSA recolhe dados sobre os cidadãos franceses e depois pode compartilhar isso com a Direção Geral para Segurança Exterior (DGSE, a agência de inteligência francesa). “É factível pensar esses acordos como uma aliança transnacional de profissionais. Os membros dessas alianças trabalham para seus respectivos governos, mas também têm um monte de interesses em comum”, explica.

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