Ex-aliado, clérigo se torna ameaça a governo de Erdogan
Tentativa de fechar escolas mantidas por seguidores de Fetullah Gülen revelou um dos mais perigosos rivais do premiê, exposto a escândalo de corrupção
O ano que terminou não deixou boas lembranças para Recep Tayyip Erdogan. Mas 2014 promete ainda mais dor de cabeça para o primeiro-ministro turco, que atravessou o réveillon sufocado por denúncias de corrupção. Erdogan, que já havia recebido um alerta das ruas em junho, encontrou um obstáculo ainda maior ao seu governo: Fetullah Gülen. O influente clérigo que vive exilado nos Estados Unidos apresenta a maior ameaça ao poder do premiê desde que o Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP) assumiu o poder, em 2002.
Os dois foram aliados durante muito tempo, mas a aliança deu lugar a uma guerra intestina pelo poder na Turquia. Os atritos tiveram início depois das eleições parlamentares de 2011, quando o premiê disse que o Movimento Gülen não era mais confiável e os seguidores gulenistas começaram a reclamar do autoritarismo do governo. Outro ponto de divergência entre Erdogan e Gülen está relacionado à questão curda, aponta a revista alemã Der Spiegel. Enquanto o chefe da inteligência turca, Hakan Fidan, realizou negociações de paz secretas com o Partido dos Trabalhadores Curdos (PKK), Gülen já defendeu um ataque militar contra os separatistas. Em fevereiro de 2012, promotores tentaram prender o chefe de inteligência, mas o premiê interveio para evitar a prisão.
Leia também:
Quem é Fetullah Gülen, o muçulmano mais influente do mundo
Erdogan mobiliza partidários e tenta manter legitimidade do governo
Escândalo de corrupção derruba dois ministros turcos
O caldo desandou de vez no final de 2013, quando Erdogan ordenou o fechamento das instituições de ensino mantidas pelo Movimento Gülen no país. Perto do Natal, a polícia da Turquia prendeu mais de cinquenta pessoas suspeitas de receberem propinas, incluindo altos funcionários do governo. Erdogan classificou a investigação policial de “operação suja” contra sua gestão e reagiu demitindo policiais. Os seguidores de Gülen são especialmente influentes no setor judiciário e a na polícia, as instituições que foram alvo dos recentes expurgos. Foi o próprio Erdogan que nomeou membros do movimento para postos nos dois setores ao assumir o poder, há onze anos, descaracterizando a força que atuava como guardiã do Estado secular.
Ao longo de mais de uma década, o premiê foi ficando cada vez mais ousado em seus planos de unir governo e religião, o que resultou nos protestos populares, contra uma série de medidas voltadas à islamização da Turquia, como restrição a bebidas alcoólicas e tentativas de ditar a vida sexual das mulheres. Se a população já demonstrava insatisfação, as denúncias de corrupção surgem para piorar o quadro para Erdogan. “Isso não quer dizer que as acusações de corrupção contra pessoas próximas a Erdogan são necessariamente falsas. A corrupção é endêmica na Turquia. Mas a razão pela qual s acusações vieram à tona agora é por causa da luta pelo poder entre Erdogan e Gülen”, explica Gareth Jenkins, analista do Institute for Security and Development Policy, um centro sueco de pesquisas e análises geopolíticas.
Para Gilbert W. Merkx, diretor do Centro de Estudos Islâmicos da Universidade Duke, nos Estados Unidos, Gülen “vem tentando tornar o Islã um componente mais aceito da Turquia moderna e para isso ele precisa ir contra algumas políticas secularistas do legado de Mustafa Kemal Atatürk”. Atatürk foi o fundador do atual Estado democrático da Turquia, em 1923, sob os escombros do Império Otomano.
Nedim Sener, jornalista que foi preso depois de expor ligações entre o governo e a comunidade do clérigo, diz que apesar de as denúncias serem críveis, é preciso questionar a motivação dos seguidores de Gülen. “A comunidade não é regida pela regra do direito e da democracia. Eles querem influência e dinheiro”, disse à Spiegel.
Mensurar o alcance do Movimento Gülen na sociedade e nas engrenagens políticas do país é tarefa temerária, mas, tanto os seguidores do clérigo como o governista AKP têm chance de perderem força no cenário político, pois boa parte dos turcos não gostaria de ver seu país dar uma guinada rumo a um Estado islâmico. “Temos de analisar o Movimento Gülen em perspectiva” – afirma o cientista político Ekrem Güzeldere, do think tank European Stability Initiative. “A Turquia tem uma população de cerca de 76 milhões de pessoas, o Movimento é estimado em 6 milhões, isso não é nem 10%. O crescimento da religião na política turca vem acontecendo há um bom tempo e o islamismo tornou-se mais visível na sociedade e no governo. Gülen é um dos jogadores desta força pela religião, mas há muitos outros jogando contra e, voltando aos números, ele não é o maior”.